Pandemia e a tributação sobre lucros extraordinários

O lucro com a dor: a tributação sobre lucros extraordinários deve entrar na pauta para viabilizar o financiamento da recuperação social e econômica do país

Em março de 2024 completam-se dois anos do fim do estado de calamidade em função da covid-19, instituído no Brasil pelo Decreto Legislativo n.º 6/2020. Do ponto de vista do orçamento público, este ciclo foi caracterizado por um regime fiscal extraordinário, a partir da aprovação da Emenda Constitucional (EC) n.º 106/2020, conhecida por “orçamento de guerra”, com autorização para aumento de despesas públicas através de processos simplificados, tendo em vista a necessidade de mitigar e combater os impactos da pandemia.

Dois anos após o fim da situação de calamidade, no contexto de discussões sobre a reforma tributária, o ciclo pandêmico permanece despertando reflexões sobre o papel do Estado nos desafios do desenvolvimento, e no enfrentamento às crises e às desigualdades.

A partir da pandemia de covid-19 observou-se uma guinada na política econômica no Brasil, em contraponto ao discurso preponderante, vigente até a decretação de calamidade.

O Estado brasileiro passou a assumir papel mais estabilizador e protetor, em especial através do pagamento do auxílio emergencial, da imunização da população contra o coronavírus e das transferências adicionais de R$ 60 bilhões aos estados e municípios, aprovados através da Lei Complementar n.º 173/2020.

Ainda assim, de acordo com relatório do Banco Mundial (2022), as desigualdades aumentaram no Brasil durante a pandemia. Para enfrentar o estado de calamidade decorrente da crise de covid, países como Espanha, Argentina, Portugal e Reino Unido adotaram medidas como a taxação de lucros extraordinários auferidos em decorrência das externalidades pandêmicas.

O relatório “Lucrando com a dor”, da Oxfam (2022), aponta uma tendência global para a ampliação das desigualdades durante a pandemia. No período de 2020 a 2021, em média a cada 30 horas surgiu um novo bilionário no mundo. Segundo o mesmo relatório as indústrias tecnológica, alimentícia e farmacêutica figuram entre os setores que ampliaram seus lucros de forma extraordinária por conta da emergência sanitária.

Estudo e análise sobre o comportamento da produção e do faturamento das grandes farmacêuticas brasileiras permite evidenciar como os grandes grupos lucraram com a pandemia e em que medida poderiam ter contribuído com o enfrentamento da crise social e econômica durante a crise sanitária.

Nesse sentido, foi desenvolvido o Trabalho de Conclusão de Curso na graduação em Ciências Econômicas “Tributação sobre lucros extraordinários durante a pandemia: um estudo de caso sobre farmacêuticas brasileiras”.

Em 2019, ano anterior ao início do estado de calamidade, o Relatório Anual Estatístico do Ministério da Saúde apontou os grupos EMS, Aché, Eurofarma, Hypera e CIMED como os maiores do ramo nacional, todos com faturamento acima de R$ 1 bilhão. Analisando a Demonstração de Resultados (DRE) publicada por estes cinco grupos, foi possível constatar que a maior parte deles – Eurofarma, CIMED e Hypera – ampliaram seus ganhos de forma extraordinária durante a pandemia nos anos de 2020 e 2021, aumentando o lucro bruto entre 7,4% (Eurofarma em 2020) a 58,5% (Hypera em 2021), em relação a 2019. Os outros dois grupos analisados também obtiveram lucros entre R$ 1,7 bilhão e R$ 2,5 bilhões durante os anos de 2020 e 2021, mas não os ampliaram de forma extraordinária em relação ao período anterior à pandemia.

O relatório da CPI da Pandemia do Senado Federal (2021) aponta que o faturamento dos grupos farmacêuticos brasileiros foi alavancado com a comercialização de produtos do chamado tratamento precoce, por vezes até mesmo ao setor público, dado que uma ampliação de mais de 1.000% foi registrada na venda de fármacos do chamado Kit Covid por algumas das grandes farmacêuticas investigadas.

Ademais, cabe apresentar o contexto em que estes lucros foram auferidos já que o cenário pandêmico resguarda semelhanças com períodos de guerra, pois do ponto de vista social, aproximadamente 665 mil pessoas morreram em decorrência da covid-19 até́ a data da revogação dos decretos de enfrentamento à pandemia em 2022. Na perspectiva econômica, além da ampliação das desigualdades, a recessão levou ao encerramento de atividades de pelo menos 580 mil empresas entre o segundo trimestre de 2019 e o segundo trimestre de 2021, conforme aponta a PNAD-Contínua/IBGE (2021).

Assim, enquanto de um lado 665 mil brasileiros morreram e 580 mil empresas fecharam, de outro, um pequeno grupo beneficiou-se deste cenário de crise sanitária, obtendo lucros extraordinários. Lucros, estes, decorrentes de externalidades negativas, e não da ampliação da eficiência e da competitividade do setor.

Se o Brasil adotasse a tributação sobre os lucros extraordinários do setor farmacêutico durante o estado de calamidade, apenas sobre três grupos que obtiveram lucros extraordinários analisados – da mesma forma que fizeram países como Grécia, Espanha, Portugal e Reino Unido – possibilitaria, conforme estimativa da pesquisa, que o Estado brasileiro arrecadasse aproximadamente R$ 3,2 bilhões.

Este valor seria capaz de financiar programas como o de internet para 18 milhões de alunos de baixa renda durante a pandemia, política vetada pelo Executivo Federal à época sob argumento de “rigidez orçamentária”.

Por fim, no atual contexto de reforma tributária, registra-se que a tributação sobre lucros extraordinários deve entrar na pauta para viabilizar o financiamento da recuperação social e econômica do país.

Além disso, o aprofundamento da crise climática que resultou no maior número de Decretos de Emergência e Calamidade na última década no Brasil mostra a necessidade de o Estado brasileiro encontrar-se com sua Carta Magna de 1988, inserindo mudanças em seu artigo 154, permitindo a instituição de impostos extraordinários, também, no caso de enfrentamento de estados de calamidade em decorrência da crise climática.

 

Luis Filipe Eich é economista graduado pela UFRGS e mestrando em Economia na UFRGS.

Rosa Angela Chieza é Doutora em Economia pela UFRGS e Professora do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.

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