“finde mundo”: contemplado pelo Prêmio Carolina Maria de Jesus, livro de poesia da dramaturga Lígia Souto reflete sobre finitude, cotidiano e política
Publicada pela editora Patuá, obra marca a estreia literária da atriz, dramaturga e roteirista paulistana
“finde mundo é escrito numa linguagem despida de lirismo para registrar o absurdo de um real cotidiano que tomou o Brasil de assalto no final da segunda década deste século e deste milênio.”
Trecho do prefácio assinado pelo jornalista e escritor Leo de Sá Fernandes
Encarar o fim como fato e possibilidade e, ainda assim, seguir a vida. É essa inquietante dualidade que encontramos em “finde mundo” (164 págs.), obra de estreia na poesia da atriz, dramaturga e roteirista Lígia Souto, publicada pela editora Patuá.
Contemplada, em 2023, pelo Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres (MinC), a obra conta com a caligrafia da autora e poemas que brincam com a informalidade, além de paratextos assinados pelo escritor e jornalista Leo de Sá Fernandes.
“finde mundo” divide-se em seções que representam os meses do ano, partindo do cotidiano para abordar angústias relacionadas com a finitude e, a partir dessa exposição do dia a dia, inseri-las na contemporaneidade de maneira crítica e dotada de significados subjetivos e também políticos. É nesse sentido que o prefaciador Leo de Sá destaca que a força motriz de Lígia em “finde mundo” parece a mesma da pergunta do filósofo e crítico cultural britânico Mark Fisher no subtítulo de seu livro ‘Realismo Capitalista’: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?”
Ao refletir sobre sua obra, a autora resume: “‘finde mundo’ parte da perspectiva de um eu-lírico que aguarda, e até anseia, pelo fim de tudo – e tem que lidar com a realidade implacável da vida que continua. Juntos, os poemas traçam um calendário do cotidiano de quem vive, dia após dia, mês após mês, a vida na ansiedade da espera e se pergunta ‘o que fazer com o tempo que ainda tenho nas mãos? o que sentir?’” E essa pergunta, diante da indagação filosófica de Mark Fisher, ganha ainda mais dimensões.
Para Lígia, que escreve desde a alfabetização, ter sua estreia literária legitimada por um prêmio nacional representa um reconhecimento de seu ofício como escritora. Ela conta que suas principais influências para escrever e se comunicar foram Ana Cristina César, Paulo Leminski e José Saramago, e destaca que “A teus pés”, de Ana C., foi uma referência para a escrita e também para a estética do seu livro de poesia. Nele, a reflexão parte de dentro e ganha novos contornos quando os poemas são lidos em conjunto. Assim, a casa, o quintal e os pensamentos do eu-lírico se expandem até conseguir englobar o resto do mundo, sobretudo o Brasil, como cenário do caos.
Segundo o prefaciador da obra, a casa e o quintal tornam-se o espaço onde a sujeita-lírica pousa o seu olhar poético e inconformado: “As notícias do fim do mundo chegam e atravessam as paredes sem precisar de mensageiros, e ganham ares de horror causando uma atmosfera tensiva em alguns versos”. Mas, embora o “finde mundo” possa parecer um pouco trágico e assustador à primeira vista, o livro também se arvora de um tom humorado e encantador que perpassa os leitores. Leo destaca o quintal como a zona fronteiriça entre a casa e a rua, o público e o privado e o rural e o urbano, em que o fim torna-se começo e resta ainda alguma esperança.
“Acho que poderia dizer que o que fica do “finde mundo” é a certeza de que, mesmo que o mundo se acabe, o amanhã sempre chega”, observa a autora, ao refletir sobre a obra.
Lígia Souto: conheça a autora que encontra o fim e o começo nas palavras
Natural de São Paulo, Lígia Souto é atriz, dramaturga e roteirista. Começou a escrever ainda criança, criando livretos e histórias em quadrinhos que se perderam com o tempo. Por isso, passou a guardar todos os cadernos que produziu ao longo dos anos e aos 19 anos criou um blog “secreto”, que usava apenas para guardar seus textos, o que serviu de acervo para resgatar os poemas que hoje compõem o livro “finde mundo”.
Em 2015, aos 23 anos, se formou em atuação e no mesmo ano ingressou no curso de dramaturgia da SP Escola de Teatro. Desde então, escreveu as peças Estrangeiro; Udumbara; Cinema Jenin (coautoria – peça vencedora do Concurso Anual de Dramaturgia DramaTEns 2018 em Portugal) e Sozinhos, vc sabe que eu te amo; além de ser co-criadora e editora de teatro em livro na editora efêmera, criada para publicar dramaturgias brasileiras contemporâneas; e foi roteirista da série de ficção Boto (2020, TV Cultura) e do reality show Drag Me As A Queen! Celebridades (3 e 4T, Canal E!).
No momento, está trabalhando em um novo original de poesia, centrado no universo onírico, e também uma nova dramaturgia, ainda sem previsão de lançamento.
Confira o poema “corpo-espaço” (pág. 151):
“ultimamente eu sinto dores
pequenas e agudas
em lugares que não sei.
tubulações obstruídas de desejos frustrados
ou motor sem água, sem óleo
sem sangue.
ou terras vazias, espaços vagos
não-habitados
com ninguém além de mim.
dores
tão minúsculas e estridentes
como pequenos balões estourando
e murchando
e me lembrando
da festa que eu já fui.”
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https://www.editorapatua.com.