Como nascem os monstros
Daniel Medeiros
O homem tenta roubar a bicicleta do outro em pleno centro da cidade e as pessoas que passavam pelo local o derrubam. Um dos passantes dá uma chave de braço e o ladrão perde a consciência. As pessoas aplaudem. Quando a polícia chega, o corpo está estendido no chão, sem vida. Ninguém sabe o que aconteceu, exceto que se tratava de um ladrão de bicicletas.
O segurança desconfia da moça negra dentro da loja de perfumes. Aproxima-se dela e pede que ela lhe entregue a bolsa. A mulher reage e começa a xingá-lo. Outros dois seguranças aparecem e a arrastam para um área reservada, onde começam a agredi-la com chutes e socos. A moça bate com a cabeça em uma quina da parede e começa a sangrar muito. O serviço médico é acionado e ela é levada, inconsciente, para o hospital, onde chega sem vida. Ninguém repara na bolsa que fica largada no chão da loja. Dentro, havia documentos e pertences pessoais. Nenhum perfume.
O soldado da nação agressora é preso e admite que atirou nas costas de um cidadão comum da cidade invadida, em plena luz do dia. O soldado é muito jovem e tem olhos assustados. Afirma que “eram as ordens”. Ouve a sentença de morte dos juízes por meio da tradutora que repete, próxima ao seu ouvido, as palavras ditas em uma língua que não entende. Apenas balança a cabeça, como quem avalia o preço de sua obediência.
A juíza diz “você pode aguentar mais um pouquinho?”, para a menina de onze anos, vítima de estupro dentro de sua própria casa e grávida de quase sete meses. Uma criança com uma criança, não compreende o que aquela mulher lhe propõe, não compreende o que está acontecendo desde o momento em que aqueles nos quais ela mais confiava submeteram seu corpo àquele tormento. E, ainda sem compreender, torna-se o centro de um debate do qual os que falam não protagonizam nada. Só há essa criança, o agressor adolescente, uma casa que deveria ser guarida, um bebê fruto-vítima e uma decisão inadiável.
O cidadão não admite ter de se dirigir àquela mulher como “chefe” e, principalmente, ter a sua atenção chamada por ela. “Quem ela pensa que é”, pergunta-se, enquanto o sangue ferve de indignação. Toda a sua formação está de cabeça para baixo. Ele é quem deveria estar no comando, determinando, organizando e sendo magnânimo quando achasse que isso fosse conveniente. Mas, uma mulher é quem manda e não gosta do que ele faz. “Quem é ela para gostar de alguma coisa?” Não se contém e quebra-lhe a cara. “Recado dado”, pensa, enquanto é detido pelos seguranças do prédio.
As duas moças, no bar, beijam-se, até que são surpreendidas por um homem furioso. Ele xinga, diz que vai puxar a cinta para dar uma lição nelas, que elas eram duas crianças e não deveriam estar fazendo aquela sem-vergonhice, mas que era isso, aquela geração não prestava mesmo, por isso que não deveria haver livre arbítrio. Uma das moças retruca e ele joga um banco de madeira nela. Ninguém intervém. Uma mulher pediu para chamarem a polícia. Fizeram um boletim de ocorrência.
O indigenista e o jornalista morreram em uma das áreas mais violentas do país, sem presença do Estado e entregue aos madeireiros e garimpeiros ilegais. A morte violenta dos dois chocou a opinião pública mundial. As principais agências de Direitos Humanos exigem uma explicação das autoridades brasileiras, principalmente em face das reiteradas declarações oficiais criticando as ONGs ambientalistas e os movimentos de defesa dos direitos dos indígenas. Nas redes sociais, muitos comentários afirmam, categoricamente, que “os dois sabiam no que estavam se metendo” e que “aquela região é área do tráfico de drogas” e que agora “só falta querer responsabilizar o presidente por estarem no lugar errado, na hora errada”.
Como disse Hannah Arendt: Em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime.
Assim nascem os monstros.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@
@profdanielmedeiros