À margem
(*Daniel Medeiros)
Descartes nunca engoliu o ceticismo do seu conterrâneo Montaigne, que relativizava tudo e buscava sempre se colocar no lugar do seu interlocutor, mesmo que este fosse um gato. Aliás, quanto a isso, Descartes ficaria ainda mais brabo: para ele, os animais não passavam de autômatos e nunca seriam capazes de sonhar correndo atrás de lebres nem de brincar com seus donos, mas apenas repetirem movimentos de nervos e músculos. Montaigne, que morreu quatro anos antes de Descartes nascer, deixou uma obra deliciosamente irregular e variada, cheia de grandes momentos e uns tantos copidesques de Plutarco, mas que, durante anos, encantou e serviu de inspiração pra muita gente, até invocarem com a história do “gato pensador” e, no século XVII, lançarem sua obra no Index, onde permaneceu por cento e oitenta anos.
Descartes detestava na obra de Montaigne o elogio da incerteza. Montaigne dizia: “(…) não vejo o todo de coisa alguma; tampouco o veem os que nos prometem mostrá-lo.” Para ele, a ignorância é o que nos define. “Que sei eu?”, perguntava-se e, a partir desse não saber, foi tateando a vida pela vida afora. Para Descartes, tudo isso era uma coisa perdulária, logo para ele que dedicou a vida para conhecer a verdade como clareza e evidência, para informar como usar a Razão e permitir a todos saírem da escuridão da ignorância. Só que, para isso, Descartes sabia que era preciso desconsiderar tudo o que fosse contingente, que não pudesse ser medido e calculado, que não pudesse ser reduzido a coisas claras e distintas e Montaigne amava justamente o contingente, pois senão por que escreveria um ensaio sobre a flatulência? Ou sobre as cócegas? Ou sobre os coxos? Ou sobre a beleza das prostitutas de Florença? Isso era inadmissível para o obcecado Descartes, o homem que ganhou a alcunha de “pai da Ciência Moderna” e que contribuiu, com sua busca insistente e seu método portátil, para um avanço do conhecimento do universo, do nosso mundo e do nosso corpo, como poucos pensadores o fizeram.
No entanto, ainda somos a contingência e o errático, ainda nos perguntamos: “quando brinco com a minha gata, como sei que ela não está brincando comigo?” Sorte que a Ciência, que nos deu remédios e vacinas contra tantos males, não assumiu de toda a obsessão de Descartes e ainda hoje mantém o ceticismo operante de Montaigne, à prova de certezas absolutas, de evidências indestrutíveis até mesmo para um gênio maligno. E ainda hoje a Ciência vai tateando e se aprimorando na medida em que testa e experimenta, e desconfia, e sabe que sabe tão pouco e que as certezas são tão provisórias, sempre. Um pouco Descartes, um pouco Montaigne, a Ciência é. Que sorte a nossa. Então, o que explica a implicação de Descartes com Montaigne?
Como todos os extremos que muitas vezes assumimos para firmar uma posição que é menos nossa e é dita mais para minar o inimigo, Descartes lutou contra a falta de segurança do edifício do Conhecimento de sua época. Para isso, foi hiperbólico: a certeza exigia uma postura rígida e inegociável. Nesse contexto, os céticos brincalhões como Montaigne eram um perigo, pois fortaleciam o inimigo e precisavam ser combatidos com a mesma fúria. “Não há espaço para o meio termo, para os isentões”, poderia ter dito Descartes sem prejuízo para sua biografia. E Montaigne poderia ter refutado, dizendo, como de fato disse: “(…) sou eu o próprio assunto do meu livro. Não há razão para você gastar seu tempo livre com assunto tão frívolo e fútil”. Ou seja: me erra.
Quase cinco séculos depois, deparamo-nos com esta questão: para impor a certeza na qual acreditam, muitos estão dispostos a queimar na mesma fogueira, sem distinção, os obscurantistas e os céticos. Cercam-se da ira santa dos que têm razão contra os que a negam, mas igualmente contra os que vivem à margem, e se importam mais com os gatos e com o ócio, com o dedo opositor ou com a reforma do calendário, como se estes fossem alienados e, por isso, amigos dos inimigos. Há razão nisso? Ou, como diria Montaigne: “ninguém está livre de dizer tolices; o imperdoável é dizê-las solenemente”.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
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