Pandemia: a grande vilã no retrocesso da alfabetização de crianças?

“É preciso um novo olhar para as crianças e para o processo alfabetizador. A escola não se faz sozinha, ela é construída pela sociedade e pelo Estado refletindo a urgência de políticas públicas que embasem um novo movimento”

Kellin Inocêncio (*)

 Há quase uma década o Brasil não contava com um aumento tão significativo no índice de crianças que não aprenderam a ler e a escrever e que estão matriculadas no 2º ano do ensino fundamental, em conformidade com a legislação. Em números, estamos nos referindo a cerca de 2,4 milhões de crianças ente 6 e 7 anos de idade, conforme apontado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a Pnad realizada pelo IBGE. Essa condição nos permite diversas análises sobre a educação brasileira, entre elas, quais foram os motivos que contribuíram para que 41% dos estudantes não tenham atingido o objetivo final de aprendizagem? E mais, quais as possíveis soluções para esse retrocesso na educação?

Em 2020 o cenário era pandêmico, estudantes e professores se distanciaram do cotidiano escolar, condição que influenciou nas ações de ensinar e aprender. De repente tudo mudou, e essa transformação repentina contribuiu para resultados negativos, sobretudo para a faixa etária alfabetizadora. Sob a ótica escolar, a ausência do mundo concreto é devastadora, por isso a criança precisa sentir, vivenciar, tocar, escutar, trocar suas experiências e outras ações ocorridas ao longo da alfabetização. Vale lembrar que isso envolve diversos aspectos que vão além dos conteúdos propostos em sala de aula e que se aproximam das relações sociais e emocionais. Assim, além das conexões com os colegas e da exploração dos espaços escolares, há a condição de afeto e os vínculos que eram construídos com seus professores e, da mesma forma, o apoio que recebiam deles. Esse apoio nem sempre era uma nova explicação, mas um abraço, um encorajamento ou um sorriso, auxiliando na diminuição das dificuldades que surgem nesse período de aquisição da escrita e da leitura.

Em meio a tantas necessidades sociais e educativas, o ensino remoto foi apontado como a solução imediata para que a escola, de certa forma, continuasse. Eram só 14 dias, mas que se transformaram em meses e, de fato, a comunidade escolar não esperava que esse período fosse se estender como ocorreu. Por outro lado, todos se reinventaram e diversas ações foram promovidas, porém a maioria foi embasada em recursos tecnológicos digitais. Diante dessa condição, não podemos deixar de lado a informação de que muitos estudantes não se encontram inseridos nesse cenário.

Essa condição enfatiza as desigualdades digitais e potencializa os resultados negativos, sobretudo entre as crianças com dificuldades de aprendizagem, mais pobres e pretas, além de apontar que há um percentual de famílias sem acesso aos recursos tecnológicos digitais necessários ou, ainda, que precisam dividir tais ferramentas com outros membros da família, como os irmãos também estudantes durante a pandemia ou os pais que trabalhavam em casa. De uma forma ou de outra, não há a condição perfeita para alfabetizar remotamente.

Outro ponto fundamental é que o alfabetizador não sabe em totalidade como direcionar metodologicamente seu trabalho no ensino remoto. Ora, esse professor não recebeu essa formação e sempre esteve fisicamente em sala de aula com crianças dessa idade. Foram tentativas de aproximação e de ensino, e essa condição que foi imposta sem aviso prévio vai de encontro ao que é realizado por décadas na alfabetização brasileira.

A partir desse cenário, concluímos que a associação entre pandemia e os desafios existentes antes dela potencializa as dificuldades e os retrocessos no processo alfabetizador de crianças. Na tentativa de diminuir essa lacuna, é preciso um novo olhar para essas crianças e para o processo alfabetizador, isto é, sem impor um ajuste forçado ao formato de ensino já existente, mas que a escola se abra a possibilidades, adequando-se ao nível cognitivo e social, assegurando, mediando e até encorajando as crianças às novas aprendizagens que as levem a aprender a ler e a escrever. Entretanto, a escola não se faz sozinha, ou seja, é construída pela sociedade e pelo Estado refletindo a urgência de políticas públicas que embasem esse novo movimento alfabetizador e combatam a precariedade da aprendizagem num futuro próximo.

(*) Kellin Inocêncio é doutora em Educação e professora da área de Educação do Centro Universitário Internacional Uninter.

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