Humberto Teixeira: O Dr. do Baião

Teve uma histórica participação no Congresso, criando a Lei Humberto Teixeira e lutando pelos direitos do autor brasileiro.

 

(Por Rogério Morais)

Humberto Cavalcanti de Albuquerque Teixeira nasceu em Iguatu, Ceará, em 1915, ano considerado “terrível” para os cearenses, quando foi registrada a maior seca na região, fato inclusive retratado pela escritora Raquel de Queiroz, no livro O Quinze. Muito cedo revelou sua sina de cearense errante: Foi morar em Fortaleza, onde concluiu o ensino médio, e aos 16 anos já estava no Rio de Janeiro, onde vendeu óculos Ray-ban, divulgou restaurantes, foi recepcionista de hotel e fez outros biscates para sobreviver. Na então capital da República Humberto Teixeira estudou medicina e se transferiu para o curso de direito, onde se formou em 1947.

Seu destino estava ligado à música. Em 1945, já conhecido nos meios musicais do Rio, ele recebe seu cunhado Lauro Maia, cearense casado com sua irmã Djanira, outro também consagrado como músico e compositor. A partir daí a produção dos dois se intensifica numa parceria explosiva. “Eram cunhados, mas pareciam irmãos, tal o grau de efetividade que os unia”, conforme pessoas ligadas à família. A primeira música que resultou dessa parceria foi Terra de Luz. O poema sinfônico com arranjos de Lauro, tinha letra e música de Humberto. Terra de Luz foi realmente a primeira manifestação musical retratando a saudade de sua terra natal.

Talento precoce, no entanto, sua primeira composição foi ainda menino, em Fortaleza, quando fazia o curso de flauta com o maestro Antônio Moreira. Compôs uma melodia em homenagem a uma jovem cearense – Hermengarda Gurgel- vencedora de um concurso de beleza. A música, com a ajuda do maestro, foi editada em São Paulo, porém não gravada. Sua primeira música gravada viria a ser a Sinfonia do Café, em 1944. Antes, porém já tinha revelado seu talento e ganhado publicidade com um concurso de música carnavalesca promovido pela revista “O Malho”. Com a música  Meu Pedacinho, ele se destacou ao lado de Ary Barroso, Ary Kerner, Índio das Neves e José Maria de Abreu. Ficou entre os cinco melhores concorrendo com dezenas de músicos já consagrados na época. Tinha somente 16 anos. E nesse período enviava regularmente várias músicas para a gravadora Guitarra de Prata, todas editadas, mas que não eram gravadas.

Meu Pedacinho foi apresentada por Aracy de Almeida, que disse: “Soldadinho, vem cá. Você é o autor dessa música? Mas como é que não orquestraram, não botaram um cantor com ela?”. Ele esquecera de que teria de se apresentar dias antes para ensaiar a melodia. Figurando entre os vencedores do concurso, a foto de Humberto Teixeira foi publicada na revista “O Malho”, ao lado de famosos ídolos.

A Sinfonia do Café foi uma criação em que ele também concorreu com grandes compositores da época, como Ary Barroso e Lamartine Babo, meados dos anos 40. A música, uma exaltação da maior riqueza brasileira, o café, foi feita por ele especialmente para ilustrar a peça Muiraquitã, então apresentada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e São Paulo. Foi um sucesso total e a partir dessa primeira gravação, pela proscrita gravadora Columbia, teve o talento reconhecido publicamente e pelos empresários do setor.

Nos primeiros anos da década de 40, a música no Brasil era o samba-canção e os ritmos importados. O pernambucano Luís Gonzaga, que já provava do sucesso, procura um parceiro para lançar um ritmo nordestino. Orientado por Lauro Maia, Gonzaga encontra Humberto. A “música do norte”, como chamava Gonzagão, foi batizada do Baião. Gonzaga do Exu (PE) e Humberto de Iguaçu (CE) somaram-se com perfeição nesse novo gênero musical que contagiava principalmente pela dança. Baião e Samba eram agora os ritmos das paradas musicais. Uma espécie de revolução. Luiz Gonzaga, com seu traje típico (chapéu e sandálias de couro e gibão), contrariando os métodos da época (os cantores e compositores se apresentavam de smoking ou de terno e gravata), e Humberto Teixeira, influenciaram toda uma geração de novos músicos.

O sucesso foi tão grande no início de 50 que ele, estimulado por um político paulista, se candidatou e foi eleito Deputado Federal pelo Ceará. De princípio recusou a proposta alegando que não era conhecido no Ceará, no entanto, estimulado por Luiz Gonzaga (“deixa comigo, Humberto: eu canto a Asa Branca e o povo vai te conhecer”), venceu o pleito e teve uma histórica participação no Congresso, criando a Lei Humberto Teixeira e lutando pelos direitos do autor brasileiro.

Depoimento

Em 1977, dois anos antes de sua morte, Humberto Teixeira esteve no Ceará para receber uma homenagem. Para o pesquisador Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez) ele deu um depoimento de 2 horas gravado no estúdio do entrevistador. Contou trechos de toda a sua trajetória, desde os primeiros anos de vida, na cidade de Iguaçu, até as últimas parcerias com Luiz Gonzaga. “O Luiz Gonzaga, tal como eu, como Lauro, estava fazendo os primeiros sucessos dele com a Mula Preta, com Xamego, com as músicas que ele fazia com o Miguel Lima. Mas a vontade do Luiz era lançar a música do norte, como ele chamava. Ele dizia do Nordeste. Era a música do norte. Procurou Lauro Maia e o Lauro disse: ‘Olha rapaz. Esse negócio de campanha, isso me apavora. Eu sou um homem indisciplinado, eu não guardo coisas nem compromissos de um dia para outro. De maneira que eu acho mais interessante você procurar meu cunhado Humberto Teixeira. Ele também é compositor e faz músicas do norte e coisas e tal. Ele é mais organizado’. Um belo dia, eu estou no meu escritório de advogado lá no Rio, na avenida Calógeras, quando me procurou o Luiz Gonzaga. Se apresentou, eu o conhecia de nome, mas foi a primeira vez que eu vi o Luiz pessoalmente. Ele me contou que tinha estado com o Lauro e ele tinha me indicado”.

Conta que no mesmo dia chegaram “a duas conclusões muito interessantes. Uma delas é que a música ou o ritmo que iria servir de lastro para nossa campanha de lançamento da música do norte, a música nordestina no Sul, seria o baião. Nós achamos que era o que tinha características mais fáceis, mais uniformes para se lançar essa música. E outra coisa: naquele mesmo dia nós fizemos os primeiros versos, discutimos as primeiras ideias em torno da Asa Branca, não só a letra como também melodicamente”. No seu depoimento há mais de 25 anos, Humberto Teixeira reclama da mídia: “De 47 a 57, que queiram, quer não, os documentos, a história dos suplementos, das fábricas, as gravadoras, o rendimento autoral das sociedades, tudo era feito em torno do baião. O Luiz, por exemplo, tem mágoa que você não pode avaliar em torno disso. É relativamente ao que eu chamo os principiantes, os aprendizes de historiadores da música popular brasileira, todos eles muito falhos, com algumas exceções”.

No depoimento concedido a Nirez, Humberto Teixeira mostra que era perseverante no seu trabalho. Confessa que, no início, no Rio de Janeiro, enfrentando todas as dificuldades, tinha hora que dava vontade de desistir (“Eu tenho que abandonar isso porque eu não… eu devo ser muito ruim. Ninguém aceita minha música”), “e como um bom cearense eu perseverei. Perseverei até que um dia veio a primeira gravação”. Mas sua maior luta, o maior desafio, foi divulgar a música brasileira no exterior. Projeto vitorioso, é verdade, mas que lhe custou muito esforço para vencer todas as barreiras e preconceitos.

Na função de Deputado Federal, ele criou e foi aprovada a Lei Humberto Teixeira, que obrigava o governo federal a divulgar a música como se fosse uma mercadoria. Essa divulgação seria através de caravana anual de músicos ao exterior. A exemplo, na época, da música mexicana e cubana, a música brasileira traria dividendos para o Brasil. A lei foi aprovada, no entanto, como um castigo, a verba que o governo destinou, segundo ele, dava mal para as passagens. Para não se deixar vencer, viajou para Londres com um grupo de 10 artistas e conseguiu o seu intento, ou seja, um show de brasileiros na então capital do mundo.

“E eu lá, feito um desesperado, arranjar um contrato para colocar Os Brasileiros, nome que tinha dado à primeira caravana da Lei Humberto Teixeira. Havia uma grande dificuldade num centro grande como Londres onde só os mais famosos artistas do mundo se exibiam, tudo isso e eu lá tentando. O nosso embaixador na época era o Assis Chateaubriand. Depois de um determinado tempo ele tentou me dissuadir, dizendo: olha, Humberto, você tá fazendo um esforço muito grande, meu filho. Isso aqui é muito difícil. Você não vai poder abrir caminho assim num assunto desconhecido como é o Brasil, como é a música brasileira. Você traz os seus rapazes e nós fazemos aqui, tem a Anglo-Brazilian Society, eu dou uma exibição do seu grupo para essa gente e depois tudo isso tá bom, vai repercutir… Eu digo: não, embaixador. Não é isso que eu quero. Eu não quero exibir a música brasileira. Eu quero encetar uma campanha de maneira séria. Eu quero botá-los numa casa de espetáculos”.

Segundo ele, sua insistência acabou angustiando o embaixador, e os funcionários que já não o aguentavam e diziam: “Poxa, mas esse deputado maluco que veio para cá com essa ideia de música brasileira”. Sem nenhum estímulo, com dinheiro só da volta, teve a ideia de convocar uma entrevista coletiva da imprensa inglesa, com a ajuda de um jornalista cearense, Joaquim Ferreira, que era correspondente de “O Globo”. Mesmo sendo informado de que na imprensa inglesa a coletiva só era convocada para assuntos “importantes” e de que ele teria de alugar um famoso hotel, com uísque de primeira qualidade (o jornalista inglês é muito cético dessa coisa, sobretudo estrangeira, e de um país anônimo, e custa caro) pediu uma sala embaixada ao embaixador Chateaubriand para realizar a reunião com os jornalistas, e ele disse: ”você está maluco, você está doido. Que negócio é esse de conference part press com assunto de música? Você é um deputado. De jeito nenhum. Olha, a sua ideia é boa e generosa e eu tô vendo que você é um paraibano como eu…” E eu respondi: “Não embaixador, eu sou cearense”. A verdade é que o embaixador me deu a sala, foram feitos os convites e para lá foram 25 profissionais entre jornalistas e fotógrafos, representando toda a impressa inglesa: Manchester Gardian, o Times, o Daily Express, o Manchester New, entre muitos outros.

O próprio jornalista do Globo (Jornal) não acreditava que haveria qualquer repercussão: “não fique entusiasmado com o fato de baterem fotografia, muitas vezes só tem o flash… É só uma maneira de justificar o uísque e o salgadinho que eles estão comendo e bebendo”. O resultado foi positivo, ganhou as primeiras páginas de todos os grandes jornais londrinos: “Eu tinha estado, alguns dias antes, na EMI. Eu tinha uma carta de apresentação para o senhor Stanley Ross, superintendente geral da EMI, que eu tinha levado um amigo diretor da Odeon do Rio. O Stanley Ross foi muito simpático, me arranjou uma ortofônica que eu levei lá para a embaixada. Ali eu iria mostrar os discos que eu tinha levado, já gravados por “Os Brasileiros”. Gravados em acetato. Fotografias, material fotográfico, eu levei tudo aquilo. Comecei expondo o que era, dizendo que eu era um P.M., um Parlament Member, um deputado, na minha terra, e dizendo que eu queria lançar música como uma mercadoria que eu sabia que os ingleses iriam apreciar”.

Conclusão: “O resultado é que eles saíram todos alegres. Eu dei discos para cada um e também lembranças do Brasil, souvenirs… E na manhã seguinte, um frio que eu tinha medo de perder até as orelhas. Era um negócio maluco. O Joaquim foi comprar o jornal, abriu e eu lá naquele lusco-fusco, naquela manhã londrina. Eu vi o Joaquim abrir a segunda página, a terceira e tal fechou o jornal, olhou pra mim e disse: “ô seu fí duma égua!” Expressão muito cearense, muito afetiva e muito boa naquelas circunstâncias. Aí eu disse: O que é que diz, Joaquim? Ele aí traz o jornal e eu tô lá na primeira página do Manchester Gardian, e a notícia dizia: Um político brasileiro portador de uma lei da qual ele é o autor, querendo fazer intercâmbio de música brasileira com inglesa. E no final, eles diziam: Mr. Parnell (dona da maior casa de shows), ajude Mr. Tex”. O mesmo assunto foi também manchetes nos demais jornais.

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