Evolução e cenário atual do tratamento de sementes de sojas com fungicidas no Brasil

(1) Augusto Cesar Pereira Goulart e (2) João Carlos da Silva Nunes ((1) Pesquisador em Fitopatologia e Patologia de Sementes / (2) Consultor Técnico de Tratamento de Sementes)

Embrapa Agropecuária Oeste (1) e Empresa Momesso (2)

O tratamento de sementes com fungicidas é uma prática antiga e que vem evoluindo muito rapidamente nas últimas décadas. O primeiro relato no mundo, daquela que poderia ser considerada como uma forma desse processo, teve origem por volta do século XVII quando grãos de trigo, resgatados de um naufrágio no canal de Bristol na Inglaterra, foram semeados após serem considerados inaptos para o consumo, dando origem a plantas de trigo livres de Tilletia caries, fungo causador da doença conhecida como cárie do trigo.

Com o passar do tempo, a busca pela indústria química de novos ingredientes ativos tornou-se necessária, considerando o desenvolvimento agrícola e suas inovações tecnológicas. Entre os anos de 1807 e 1913, foram desenvolvidos, para o tratamento de sementes, os fungicidas a base de cobre, aldeído fórmico e os denominados de organo-mercuriais, altamente tóxicos e usados em doses elevadas. A escassez de produtos à base de mercúrio originou, no período pós-guerra, o desenvolvimento de vários produtos de síntese orgânica como os ditiocarbamatos, as quinonas, os aromáticos e os heterocíclicos. A década de 1960 foi marcada pela introdução dos fungicidas denominados de sistêmicos, para tratamento de sementes de uma maneira geral, incluindo a soja, como aqueles dos grupos dos benzimidazois, das oxatinas e alguns fungicidas do grupo dos triazóis. Na época, isso foi considerado um passo importante para a consolidação dessa prática em nível mundial. Com a demanda crescente por produtos menos tóxicos, mais eficientes e usados em doses menores, foram sintetizados, para o tratamento de sementes, fungicidas de amplo espectro e com novo modo de ação, como as estrobilurinas em 1996 e as carboxamidas em 2013, atualmente usados na cultura da soja.

Além desses novos ingredientes ativos, é importante considerar que o desenvolvimento de novas máquinas e tecnologias de aplicação desses produtos também contribuíram para o salto tecnológico observado no tratamento de sementes de soja com fungicidas. A introdução dessa prática no Brasil ocorreu de forma improvisada, sendo que essas operações aconteciam apenas nas propriedades agrícolas (on farm) e eram conduzidas de maneira bastante precária. Aos poucos a prática foi se tornando mais comum nas fazendas, o que levou os agricultores a identificarem a necessidade de um equipamento específico para essa finalidade. Foi então que em 1980 ocorreu a importação da primeira máquina desenvolvida para o tratamento de sementes de soja “on farm”. Atendendo a crescente demanda pela melhoria da qualidade nesse processo, em 2002 foi introduzida no mercado a primeira máquina desenvolvida e produzida pela indústria brasileira voltada especificamente para esse fim. Esse foi o pontapé inicial para que o Tratamento de Sementes Industrial (TSI) começasse a ganhar força no País.

O tratamento de sementes de soja com fungicidas é uma tecnologia desenvolvida para ser utilizada em sementes com elevadas qualidades fisiológica (vigor e germinação), sanitária (livres de patógenos e de sementes de plantas daninhas), genética (geneticamente pura e da cultivar de interesse) e física (livres de material inerte e de contaminantes). O objetivo principal desse tipo de prática é erradicar ou reduzir, aos mais baixos níveis possíveis, os fungos presentes nas sementes, além de protegê-las dos patógenos do solo e da própria semente, quando as condições de semeadura são desfavoráveis. Consequentemente, populações adequadas de plantas serão obtidas com a adoção dessa prática.

O negócio do tratamento de sementes globalmente é de cerca de 5,33 bilhões de dólares anuais, assim distribuídos: 38% na América do Norte, 26,4% na Europa, 24,6% na América do Sul e 11% na região Ásia-Pacífico.

No Brasil, em 2020, o mercado de tratamento de sementes alcançou a cifra de USD 654 milhões, considerando inseticidas, fungicidas e nematicidas. Os fungicidas contribuíram com USD 85 milhões, representando 13% desse mercado total, com previsão de estabilidade para os próximos 5 anos. No caso específico da soja, esse valor foi de USD 39 milhões (10% do mercado de tratamento de sementes nessa cultura), também com previsão de estabilidade para os próximos cinco anos.

Atualmente, a prática do tratamento de sementes de soja com fungicidas é realizada em duas modalidades: on farm, feito pelo próprio agricultor dentro da sua propriedade agrícola, usando máquinas específicas para este fim e o TSI, que é o processo realizado em Centros de Tratamentos de Sementes (CTS) ou Unidades de Beneficiamento de Sementes (UBS) em escala industrial. As duas modalidades trazem vantagens e desvantagens, as quais devem ser analisadas cuidadosamente pelo produtor e técnico responsável. Importante salientar que os produtos usados no TSI, bem como aqueles que o produtor utiliza no tratamento on farm, são praticamente os mesmos. O que diferencia esses dois métodos é a tecnologia de aplicação.

Tratar as sementes na própria fazenda acaba sendo uma opção para muitos produtores, devido ao custo que é bem inferior quando comparado ao TSI. Porém, caso o produtor opte por essa modalidade, é importante que essa prática seja realizada por profissionais capacitados, com utilização de bons equipamentos e que o local de tratamento seja limpo e arejado. Além disso, é preciso seguir as normas de segurança para impedir contaminações de pessoas e do meio ambiente. Todos os envolvidos na operação devem usar EPIs (Equipamentos de Proteção Individual).

Na indústria, o TSI é executado obrigatoriamente por profissionais especializados, usando equipamentos especiais e possibilitando sua comercialização já tratadas, dentro de elevados e seguros padrões de qualidade. As vantagens do TSI em relação ao tratamento on farm são cobertura uniforme, dose adequada (precisão na quantidade do fungicida), qualidade das sementes garantida, além de evitar o contato do produtor com o fungicida, reduzindo o risco de contaminação. O resultado são sementes de padrão de segurança garantido, com tratamento de elevada qualidade, agregando valor ao produto (semente) e proporcionando economia de tempo. Segundo dados das Sementes Jotabasso, o valor de uma semente que passa por um processo de TSI pode ter um custo de 15% a 20% superior em relação a uma semente sem essa tecnologia.

Em se tratando da precisão da dosagem do fungicida aplicado nas sementes de soja, um levantamento realizado pelo Grupo ATTO Sementes comparou amostras tratadas on farm com as tratadas industrialmente (TSI). Os resultados detectaram variação média de 45% na dose do tratamento on farm, enquanto nas amostras oriundas do TSI foi de apenas 7%. Resultados semelhantes foram obtidos pelo Instituto Seedcare, analisando 58 amostras de sementes de soja com TSI e 58 amostras com tratamento on farm. A análise apontou desvio médio da dose de 6,8% para o TSI e de 49% para o tratamento on farm. Estes dados demonstram claramente a eficiência do processo industrial, que possibilita a distribuição de doses exatas dos ingredientes ativos sobre cada semente, diferentemente do que ocorre no tratamento on farm, onde o fungicida é aplicado com base na dose do produto/100 kg de sementes ou na quantidade de sementes que será usada por hectare, o que dá pouca precisão ao tratamento.

A adoção do tratamento de sementes de soja com fungicidas no Brasil vem crescendo a cada ano, partindo de apenas 5% da área de soja semeada com sementes tratadas na safra 1991/1992 e atingindo significativos 98% na safra 2016/2017, sendo 25% oriundos do TSI e 73% provenientes do tratamento realizado na propriedade agrícola, também denominado on farm. Nesta safra (2016/2017), um levantamento estratificado da adoção do tratamento de sementes de soja com fungicidas, por região produtora de soja no Brasil, foi apresentado na XXXV Reunião de Pesquisa de Soja, principal fórum de pesquisa do complexo agropecuário dessa leguminosa. Os resultados revelaram o seguinte perfil de adoção do tratamento de sementes de soja: na região Sul (on farm=63,5% e TSI=36,5%), na região Sudeste, considerando os estados de Minas Gerais e São Paulo (on farm=70,0% e TSI=27,5%), na região Centro-Oeste (on farm=73,8% e TSI=26,2%), MATOPIBA (on farm=75,0% e TSI=25,0%) e na região Norte, representada pelos estados de Roraima, Rondônia e Pará (on farm=76,7% e TSI=16,7%). Na safra 2017/2018, a adoção do tratamento de sementes de soja atingiu os 100%, sendo 74% on farm e 26% TSI. A partir de então, evidenciou-se uma forte tendência de crescimento do TSI no Brasil, com uma variação bastante significativa nessa proporção, conforme observado na safra 2018/19 (65% para on farm e 35% para o TSI) e na safra 2019/20 (60% para on farm e 40% para o TSI), mantendo-se nesse patamar na safra 2020/21.

O atual portfólio de produtos para tratamento de sementes de soja proporciona ao produtor várias opções de escolha de fungicidas, os quais controlam de forma variável o complexo de fungos das sementes e do solo. Atualmente, no Brasil, as misturas de fungicidas registradas e recomendadas pelo MAPA para o tratamento de sementes de soja são carbendazim + thiram, carboxin + thiram, fludioxonil + mefenoxan, fipronil + piraclostrobin + tiofanato metílico, fludioxonil + mefenoxan + thiabendazole, tiofanato metílico + fluazinan e clorotalonil + tiofanato metílico, nas doses sugeridas pelos fabricantes. Esses fungicidas controlam eficientemente o inóculo inicial transmitido pelas sementes infectadas. Entretanto, o poder residual de 12 a 15 dias propiciado por esses produtos na proteção da plântula contra fungos de solo, por exemplo, é do ponto de vista prático, um período curto. Buscando maximizar esse controle, há a necessidade de registro e recomendação de novas moléculas que apresentem maior sistemicidade em termos de tempo de proteção mais longo, ou seja, um efeito duradouro mais pronunciado (long-lasting effect). O registro e a recomendação de novos fungicidas, de uma maneira geral, é um processo dinâmico, o qual busca fornecer mais opções de escolha para os produtores. Entretanto, segundo dados do AGROFIT/MAPA, o registro mais recente de fungicida para tratamento de sementes de soja no Brasil data de 19 de março de 2012.

O tratamento de sementes é uma prática de suma importância, pela ótima relação benefício/custo e por proporcionar inegáveis vantagens para o produtor e para a economia do País. Não vale a pena economizar no tratamento da semente, assim como não vale a pena economizar na qualidade da semente. Os ganhos de produtividade resultantes do tratamento de uma boa semente, compensa o investimento realizado. Assim, pode-se considerar que o tratamento de sementes é um “seguro barato” que o agricultor faz no início de implantação de sua lavoura.

* Artigo publicado na Revista Cultivar da edição de outubro de 2021

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