Construindo Cidades Feministas: série de eventos reúne mulheres no setor de mobilidade e urbanismo

Brasília recebeu o terceiro encontro de uma série de eventos globais entre profissionais do setor de transporte público para abordar a perspectiva de gênero e inclusão nas cidades e seus sistemas de mobilidade

 

Para construir uma cidade inclusiva, o desenho e o planejamento urbano precisam considerar as experiências, necessidades e preocupações das mulheres, pois quando uma cidade é segura para elas, é segura para todos. Essa foi a mensagem principal do evento Construindo Cidades Feministas: Caminhos para a Mobilidade Inclusiva e Sustentável, ocorrido em agosto em Brasília.

Idealizado pelo movimento Women Mobilize Women, no âmbito da Iniciativa Transformadora de Mobilidade Urbana (TUMI), o evento faz parte de uma série de eventos regionais. Pela primeira vez na América Latina, foi organizado em parceria com a Secretaria Nacional de Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades do Brasil, e representantes do Grupo Estratégico de Mobilidade da Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZGmbH, a agência alemã de cooperação técnica no Brasil, integrado pelos projetos relacionados ao desenvolvimento urbano sustentável C40 Cities Finance Facility, Cidade Presente, Euroclima e AcoplaRE.

As primeiras edições ocorreram em Delhi, na Índia, e Manila, nas Filipinas, e a próxima ocorrerá em Nairobi, no Quênia. Em Brasília, cerca de 100 pessoas estiveram presentes, entre especialistas, pesquisadoras e representantes do setor público, que puderam trocar contatos e experiências, além de promover o fortalecimento de redes de pessoas que trabalham para integrar a perspectiva de gênero, racial e diversa nos sistemas de transporte e mobilidade urbana em países como Brasil, Colômbia, Chile, Equador, Peru, Costa Rica, Espanha e Alemanha.

“As mulheres não são um grupo homogêneo e por isso destacamos as perspectivas diversas. Começamos a série de eventos para abordar diferentes contextos regionais”, diz Lena Plikat, da Women Mobilize Women e assessora de políticas de mobilidade sustentável na GIZ.

A TUMI é financiada pelo Ministério da Cooperação Econômica e Desenvolvimento do governo alemão (BMZ, na sigla em alemão), que em 2021 anunciou uma política exterior feminista. E não se trata de “política externa para mulheres, mas para toda a sociedade”, pontuou a ministra das Relações Exteriores, Annalena Baerbock, à época.

Construir uma cidade feminista, ou seja, uma cidade que busca promover a igualdade de direitos e oportunidades entre os gêneros, e eliminar desigualdades e opressões, começa por reconhecer as diferentes necessidades dos grupos que vivem nela.

“É quase inovador um evento sobre construir cidades feministas, antirracistas e inclusivas. Mesmo com décadas de experiência em como navegar em espaços como mulheres, pessoas negras, pessoas indígenas, idosos e crianças ainda estamos longe de incluir essas perspectivas,” destacou Sarah Habersack, diretora do Programa Transformação Urbana e dos projetos ANDUS e Cidade Presente da GIZ Brasil.

“Estamos juntando forças com Mujeres en Movimiento para motivar a criação de uma rede no Brasil”, anuncia Lena, do Women Mobilize Women. Daniela Chacon Arias, diretora executiva da Fundação Tandem, no Equador, e cofundadora da Mujeres en Movimiento, iniciativa dedicada à América Latina completou: “Nestes anos, vimos o poder das redes, a importância das mulheres se juntarem para dialogar sobre problemas, oportunidades, lições aprendidas. Queremos ser uma rede regional forte, e o Brasil é muito importante, precisávamos começar essa conversa sobre a rede no Brasil”.

Ambas iniciativas surgiram em 2018 para fortalecer mulheres que trabalham no setor de transportes em seus continentes e promover apoio. Da união com um terceiro movimento, a Women on the Move Transforming Transport in Asia, em 2024 nasceu a Aliança Global para o Transporte Feminista para conectar e empoderar organizações, redes e indivíduos que trabalham para construir sistemas de transporte mais resilientes, adaptáveis, e equitativos.

Cidades Feministas

O evento começou com um painel de contextualização. Cyntia Carvalho e Silva, delegada de polícia da DECRIN – Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa, ou por Orientação Sexual, ou contra a Pessoa Idosa, ou com Deficiência do Distrito Federal trouxe dados perturbadores recém-publicados pelo Fórum Nacional de Segurança Pública. No Brasil, acontece um estupro a cada 6,5 minutos: 88% das vítimas são do sexo feminino e 62% delas tem até 13 anos.

Dois em cada dez casos de estupros no país ocorrem em vias públicas, que com soluções simples como iluminação eficaz, podem ser evitados. Na falta de ambientes seguros, muitas mulheres ao longo do tempo e após experiências traumatizantes suas ou de suas pares, desenvolveram táticas para se defender de crimes como a importunação sexual, andando com uma agulha ou um lápis bem apontado em mãos, ou spray de pimenta no bolso.

Paola Tapia Salas, diretora de Transporte Público Metropolitano do Ministério de Transportes e Telecomunicações do Chile, comentou que também, como o Brasil, implementou no seu país as paradas noturnas, em que mulheres e pessoas idosas ou com deficiência têm direito a desembarcar fora das paradas de ônibus durante a noite. “As mulheres se sentem inseguras na América Latina. Uma mulher que vive na periferia pode viver 16 anos a menos comparada às que vivem em áreas ricas”, diz Paola.

“Ao construir cidades feministas temos que priorizar o meio ambiente”, completa a diretora. “O Chile é o país com o maior número de ônibus elétricos, depois da China. Nossa rede tem 6700 ônibus, com 2480 elétricos e 28 eletro-terminais, e estamos trabalhando para desmasculinizar o setor de transportes”, disse. Paola citou os resultados de um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID): “As mulheres motoristas são mais empáticas, dirigem com maior segurança, geram melhor clima de trabalho e ainda fazem com que a bateria dos elétricos seja melhor aproveitada porque dirigem com maior sutileza”.

Marcos Daniel Souza dos Santos, diretor na Secretaria Nacional de Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades, ressaltou a existência de uma lei federal de mobilidade urbana que trata de sustentabilidade, descarbonização e inclusão social (12.587/2012). E reconheceu que o governo precisa investir mais em diretrizes para uma gestão de políticas públicas baseadas em dados e eficazes para superar desigualdades e melhorar a infraestrutura de mobilidade. “Estamos trabalhando e não é fácil mobilizar os tomadores de decisão”, diz Marcos. “É difícil juntar dados num país do tamanho do Brasil, com essa diversidade de culturas, de investimentos, de capacidades técnicas, e trabalhar dados com interseccionalidade”.

Interseccionalidade

Conceito que descreve como diferentes formas de discriminação ou opressão, como racismo, sexismo, classismo, capacitismo, homofobia e outras, se sobrepõem e se interligam criando experiências únicas de marginalização – a interseccionalidade foi um tema bastante presente no evento. “Interseccionalidade é a primeira palavra que tem que estar na mente dos que desenham políticas públicas: pensar que os nossos clientes sofrem todos os dias opressões cruzadas e isso se potencializa, tira a voz dessas pessoas”, ressalta Cyntia Carvalho e Silva, delegada de polícia e doutoranda em Sociologia.

“Na prática, é como você analisa a realidade a partir dos diferentes corpos, formações e estruturas sociais que estão sobrepostas em interação. Como os diferentes corpos que estão na cidade podem viver ou não viver essa cidade?”, diz Paique Santarém, mestre em Antropologia e doutor em Urbanismo. “Uma hipótese é que a cidade é montada para atacar corpos, acirrando as violências de classe, de gênero, de raça. A interseccionalidade não está só em como o corpo circula pela cidade, mas como a cidade constrói corpos diferentes, divergentes, corpos excluídos e corpos aceitos”, conclui.

Ao contrário dos eventos tradicionais do setor de mobilidade, em que a maioria do público participante é formada por homens, chamou a atenção de algumas participantes a pouca presença masculina na plateia. “Homens, precisamos de vocês! Precisamos de todos para mobilizar e sensibilizar nosso coletivo porque a gente perdeu muito com o individualismo”, destaca Cyntia Carvalho e Silva, delegada de polícia da DECRIN – Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa, ou por Orientação Sexual, ou contra a Pessoa Idosa, ou com Deficiência do Distrito Federal.

Como o evento foi direcionado ao público que representa diversidade e inclusão nas organizações públicas, privadas e do terceiro setor na área de mobilidade, os convites foram direcionados à líderes de atuação femininas no setor, e, por isso, naturalmente, grande parte do público era feminino, oferecendo oportunidade de troca de experiências pessoais e profissionais.

“Pensamos numa programação para dar voz a essas pessoas que pensam, planejam e atuam na mobilidade, com atividades que motivassem trocas, promovessem sentimentos, vinculando essas mulheres que moram em cidades e países diferentes, mas que vivem dores muito parecidas”, diz Cecília Martins, coordenadora do projeto Cidades Presentes na GIZ Brasil, que promove a integração de setores e serviços nas cidades.

Novas Dinâmicas

Além dos painéis com conteúdo, uma série de dinâmicas e atividades provocaram reflexão e compartilhamento de experiências, conhecimento e ferramentas. “Queria aprender outras dinâmicas de participação entre mulheres. Por exemplo, a do aquário, é a primeira vez que eu vejo esse tipo de facilitação e todas estavam muito comprometidas, queriam participar”, conta Felipe Azcarate, ponto focal de gênero nos projetos em que trabalha na GIZ Colômbia.

Na dinâmica do Aquário que Felipe comentou, as pessoas sentaram-se em uma roda e as cadeiras do centro podiam ser ocupadas por qualquer pessoa que quisesse compartilhar suas histórias. As três posições fixas ao centro iniciaram a dinâmica trazendo alguma provocação, inquietação ou desafio para fomentar a discussão. As cadeiras fixas foram ocupadas por Maína Celidonio, Secretária de Transporte no Rio de Janeiro, Simony Cesar, fundadora e CEO da NINA e Marta Serrano, secretária de transportes terrestres do Ministério de Transportes e Mobilidade Sustentável da Espanha.

Clarisse Cunha Linke, diretora executiva do Instituto de Política de Transporte e Desenvolvimento, o ITDP Brasil, ocupou uma das posições rotativas e trouxe duas inquietações:

“Deveríamos também pensar os sistemas de transporte como oportunidades para coletivizar o trabalho do cuidado, e não simplesmente ajustar os sistemas para garantir que a mulher continue sobrecarregada. Nessa cidade feminista as várias funções em torno do trabalho de cuidado são compartilhadas entre homens e mulheres”, pontua. “A necessidade das organizações e pessoas atuantes na área, de fato terem uma postura mais assertiva na contratação de mulheres, de mulheres negras no caso do Brasil, de retenção das mulheres, e o comprometimento institucional, de trazer a mulher para o mercado de trabalho de transporte, mobilidade, planejamento e operação, e mantê-las nesse lugar”, completa.

Clarisse compartilhou que se dedica há mais de uma década ao setor e sua sensação – compartilhada por muitas colegas – às vezes é de “enxugar gelo, o avanço é muito pequeno, muito pontual”. Simony Cesar, fundadora e CEO da Nina, startup e consultoria que oferece um canal padrão de denúncias para auxiliar na construção de cidades mais seguras e inclusivas, contou sua história pessoal e aproveitou para falar palavras de esperança e estimular a persistência.

“Eu ainda era uma menina quando eu comecei a trabalhar com transporte e o estudo que me norteou é do ITDP, sobre o acesso de mulheres e crianças à cidade, publicado em 2018. E foi através das observações que eu notei desse estudo, que eu pude convencer a Prefeitura de Fortaleza. E hoje a cidade conta com um programa de combate à importunação sexual premiadíssimo. Tem uma consequência em cascata do trabalho dessas mulheres que talvez elas não percebam”, diz Simony.

Noutra dinâmica, as participantes se engajaram numa desafiadora caminhada externa, nos arredores do hotel do evento, com a tarefa de fotografar inadequações ao imaginar uma cidade segura, inclusiva, antirracista, acessível, com empregos, e com uma governança e financiamento equitativos. O evento contou ainda com uma emocionante peça de teatro, que abordou as experiências de violência moral e sexual que, diariamente, a maioria das mulheres sofre, e inspirou as participantes a compartilharem suas próprias experiências e soluções possíveis.

Sobre a Women Mobilize Women

Lançada pela a Iniciativa Transformadora de Mobilidade Urbana (TUMI), em maio de 2018, como a primeira conferência para empoderar mulheres no transporte, com 200 especialistas em transporte, mulheres e homens, reunidos em Leipzig, Alemanha. Hoje, a Women Mobilize Women, Mulheres Mobilizam Mulheres, é uma rede de mulheres que buscam ativamente transformar o setor de mobilidade em mais diverso e inclusivo.

O movimento também se esforça para aumentar a conscientização sobre o tópico de gênero entre planejadores e tomadores de decisão no setor de transporte, em direção a sistemas de transporte feministas onde ninguém é deixado para trás. Women Mobilize Women também trabalha para construir capacidades locais por meio de programas de liderança e mentoria, visitas de estudo e produtos de conhecimento digital.

Women Mobilize Women integra a Aliança Global para o Transporte Feminista (Global Alliance for Feminist Transport), que foi cofundada com Mujeres en Movimiento (América Latina) e Women on the Move (Ásia) para unir iniciativas de transporte feminista ao redor do mundo. Juntas, trabalham para criar sistemas de transporte sustentável que respondam às questões de gênero e definir uma agenda global para o tema no futuro.

Sobre a TUMI – Iniciativa Transformadora de Mobilidade Urbana 

A Transformative Urban Mobility Initiative (TUMI) é implementada pela GIZ e financiada pelo Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento da Alemanha (BMZ). Formada por 11 parceiros, entre bancos de desenvolvimento, redes de cidades, think tanks, e organizações do terceiro setor, é a principal iniciativa global de implementação em mobilidade sustentável. A visão da TUMI é ter cidades prósperas, com desempenhos econômicos, sociais e ambientais melhorados, alinhados com a Nova Agenda Urbana, a Agenda 2030 e o Acordo de Paris.

Sobre a GIZ 

Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH é uma empresa federal de benefício público que apoia o governo da Alemanha, bem como clientes dos setores público e privado, em uma ampla variedade de áreas, incluindo o desenvolvimento econômico e o emprego, a energia e o meio ambiente, a paz e a segurança.

Como prestadora de serviço em diversas partes do mundo no campo da cooperação internacional para o desenvolvimento sustentável, a GIZ trabalha em conjunto com seus parceiros e parceiras para desenvolver soluções efetivas que ofereçam melhores perspectivas às pessoas, e melhorem, de forma sustentável, suas condições de vida.

No Brasil, a Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável atua, principalmente, em duas áreas temáticas: proteção e uso sustentável das florestas tropicais, assim como energias renováveis e eficiência energética.

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