Cartas na mesa e os riscos à democracia

Paulo Niccoli Ramirez

Na última semana de julho de 2022, ano das mais conturbadas eleições presidenciais no Brasil, vivemos o que deverá ser conhecido como “A semana das Cartas”. A Faculdade de Direito da USP publicou no dia 26, a “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!”. Constam mais de 300 mil assinaturas, entre elas a de artistas, intelectuais, professores, banqueiros, investidores, entre outros segmentos da sociedade civil.

O documento representa oposição ao presidente Jair Bolsonaro (PL), que dias antes convocou em Brasília uma reunião com embaixadores de todo o mundo para relatar supostas irregularidades das urnas eletrônicas empregadas nas eleições. Sem provas, seu monólogo foi tido pela imprensa internacional como delírio e afronta à legitimidade do processo eleitoral brasileiro.

No Brasil, o encontro foi a gota d’água para os defensores do regime democrático, culminando na carta publicada pela faculdade. A adesão massiva de importantes setores da sociedade à carta em defesa da democracia publicada pela USP é indicativo de que Bolsonaro perdeu apoio do setor financeiro, seu avalista nas eleições do ano de 2018. A leitura feita pelo setor mais abastado da sociedade é a de que o atual governo expressa um verdadeiro espantalho aos investimentos internacionais no país, sendo sua figura inversa a de um garoto propaganda para a promoção das atividades econômicas locais.

O presidente produz a perda da credibilidade do país nos cenários internacional e nacional ao rejeitar os ritos democráticos, a defesa do meio ambiente e o ataque aos direitos humanos. Estes elementos são vistos hoje como premissas elementares a serem respeitadas pelas grandes organizações mundiais, porém Bolsonaro tem demonstrado estar na contramão da história.

Durante o seu mandato, seus discursou inumeráveis vezes foram contra as instituições democráticas e republicanas (entre elas o STF, a Justiça Eleitoral, partidos opositores, organizações do terceiro setor) e grupos sociais marginalizados (indígenas, negros e mulheres, sobretudo). A carta uspiana denuncia o desejo de Bolsonaro promover rupturas institucionais, o que representa flerte com o autoritarismo. Embora possamos considerar a carta tardia, uma vez que vários setores da esquerda e progressistas, desde as eleições de 2018, denunciavam a aproximação do presidente com o fascismo e sua defesa à ditadura, o documento revela o limite extremo de diferentes setores da sociedade em relação ao presidente.

No dia 28 de julho os ministros das Defesa do continente participaram da 15ª Conferência de Ministros da Defesa das Américas, incluindo o ministro e militar brasileiro Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira. Foi assinada a carta de Brasília, na qual todos os ministros se comprometeram a respeitar o resultado das urnas e as instituições democráticas em seus respectivos países. Pode-se dizer que hoje, no Brasil, as forças armadas estão divididas em dois grupos. Um deles, sob diálogo com os meios de comunicação e diversos setores da sociedade brasileira, procura defender a Constituição de 1988, o regime democrático e o resultado das urnas. Outro grupo, constituído por militares defensores da manutenção de Bolsonaro na presidência, seja lá qual for o resultado das eleições, procura expor o apoio incondicional aos discursos lunáticos do presidente sobre as visões deturpadas que possui a respeito das ilusórias ameaças do comunismo e do que nomeia como ideologia de gênero, além da visão peculiar ou mesmo ignorante sobre o que julga ser a liberdade de expressão.

Na mesma data, o presidente publicou sua própria carta em defesa da democracia em sua conta no Twitter. As não menos que 30 lacônicas letras de sua carta afirmam: ‘Por meio desta, manifesto que sou a favor da democracia.’ A sua mensagem pode ser interpretada como o resultado da pressão de seus aliados em nome da manutenção dos bons modos. Isto é, expressar ao menos da boca para fora que é a favor da democracia para não produzir estragos ainda maiores à sua imagem já arranhada em seu próprio país.

A última pesquisa DataFolha, publicada também no dia 28, foi um sinal de que a população rejeita o mandato do presidente. Há a indicação de uma virtual vitória de Lula no primeiro turno, demonstrando que a bolsonarista PEC do Desespero (que distribuiu recursos públicos para auxílio de brasileiros) não foi suficiente para aumentar a sua popularidade.

Diversas pesquisas eleitorais têm indicado que as eleições desse ano possuem caráter de plebiscito. São dois os motivos. O primeiro deles gira em torno do fato de que trata-se da primeira eleição no país que envolve dois presidentes, Lula (com margem acima dos 42% das intenções de votos) e Bolsonaro (com cerca de 30%). Ambos lideram com grande distância em relação ao terceiro colocado, Ciro Gomes (abaixo dos 10%). Os resultados são reflexo da comparação entre os mandatos.

O segundo motivo que estabelece o caráter plebiscitário das eleições deste ano refere-se à constatação de que Bolsonaro representa riscos à democracia e aos direitos dos brasileiros, portanto, sua feição antidemocrática opõe-se à de Lula que, no atual cenário, mais do que representar a ideologia de centro-esquerda transformou-se no expoente da defesa da democracia diante do pouco êxito de outros candidatos que procuraram ser a “terceira via”.

As cartas desta semana expressam tentativas ainda institucionais e democráticas, talvez as últimas além das eleições, para criticar e incentivar pacificamente o fim por meio do voto do que deverá ser considerado como o mais desastroso presidente da República do Brasil. Lula foi o grande beneficiado na Semana das cartas, pois tem alavancado apoios cada vez mais volumosos, mesmo de seus opositores de outrora, sob o argumento de que sua vitória é representativa não por ser uma figura da esquerda, senão devido expressar a defesa da democracia.

Ciro Gomes (PDT) flerta com o termo terceira via, mas sem força para alavancar seus índices. Desarticulados, sem popularidade e sem um projeto explícito que solucione os atuais problemas da população, aspirantes como Simone Tebet (MDB), André Janones (Avante), Felipe D’Ávila (Novo), Luciano Bivar (União Brasil) e outros, vieram a se somar a candidatos da terceira via.  Trata-se da mais insípida geração da centro-direita brasileira, hoje considerada inexpressiva diante do eleitorado.

Paulo Niccoli Ramirez é professor da ESPM, da Casa do Saber e da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Autor dos livros “Sérgio Buarque e a Dialética da Cordialidade” (EDUC, 2011) e “Ética, cidadania e sustentabilidade” (SENAC, 2021).

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