Trabalho escravo da fé e a relação entre pastores e igrejas no Brasil
Ricardo Pereira de Freitas Guimarães*
Os tribunais brasileiros estão recebendo uma série de ações de pastores e ministros de igrejas contra o chamado “trabalho escravo da fé”. As ações denunciam relações de trabalho abusivas, que, por muitas vezes, incluem: trabalho realizado em sete dias da semana sem qualquer folga semanal; excesso de trabalho diário sem qualquer contraprestação; impossibilidade do gozo de férias, não pagamento de 13º salários, não recolhimento de FGTS, descontos de dízimos diretamente do comprovante de pagamento dos pastores, além do desligamento desses pastores do trabalho sem qualquer direito ou verba rescisória.
Importante frisar que a fé pura é uma das coisas mais bonitas que o humano pode sentir, gera amor ao próximo em muitos aspectos, mas é fundamental realizar uma diferença entre a relação do homem com Deus e sua relação com a igreja enquanto prestador de serviço. E essa última relação não pode ser confundida com a fé. Noutras palavras, a relação entre o homem e Deus, de significado ímpar e de vital importância, é uma relação metafísica, não podendo ser objeto de avaliação pelo Judiciário, sobretudo em razão de nossa Constituição Federal garantir o estado laico. Por outro ângulo, a igreja ou a empresa são os verdadeiros tomadores dos serviços de uma prestação de serviços existente no plano terreno e é essa a reflexão que deve ser realizada, pois a depender do caso, se torna evidente o abuso nessa relação, o que pode e deve ser protegido pelo Poder Judiciário.
O fundamento para que seja adotada tal postura por algumas igrejas, em regra, é encontrado em regulamentos internos das próprias igrejas, os chamados regulamentos eclesiásticos administrativos. Esses documentos criam um mundo paralelo ao próprio regramento constitucional existente, violando todo o arcabouço jurídico em matéria de condições mínimas para o exercício de um trabalho. Na verdade, o que se observa, em algumas hipóteses, é uma espécie de truck system, o trabalho religioso escravo. Isso porque o ministro ou pastor, tendo como única expertise aquela função desenvolvida, acaba por aceitar toda e qualquer imposição realizada pela igreja, sob pena de aniquilar a sua condição de sustentabilidade e de sua família.
Para tanto se criam metas impostas a referidos trabalhadores de recolhimentos de ofertas, metas de arrecadação de dízimos, metas de “conquistas de almas” para a igreja, metas de batismos, entrega de relatórios de produção dessas metas, que muitas vezes escondem a elevada conquista financeira da igreja-empresa que, não em poucas ocasiões, pertencem a grupos econômicos com canais de televisão e rádio próprios, editoras, escolas, fábricas de alimentos, construtoras e outros segmentos empresariais.
Observe-se que a depender do desenvolvimento dessas metas impostas, o ministro ou pastor é “promovido” para uma igreja maior, melhorando, então, de acordo com a decisão da cúpula da igreja, seus rendimentos mensais. Esse mecanismo acaba por afastar uma visão que aos poucos se mostra superada pelo próprio Poder Judiciário de que é um trabalho realizado pela fé. E que por essa razão não se poderia reconhecer uma relação de emprego.
Vale destacar dois pontos. Primeiro, diz respeito ao impedimento existente em alguns regramentos internos das igrejas quanto ao exercício da qualquer outra atividade, ou seja, o trabalhador pastor ou trabalhador ministro passa a ser praticamente propriedade da igreja, o que afasta por qualquer espectro de análise eventual autonomia na prestação de serviços. De outro lado, e por segundo, o trabalho não se sustenta como voluntário, tendo em vista que é remunerado pela igreja-empresa, contrariando o próprio texto da lei que cuida do trabalho voluntário.
É muito importante dizer que a religião é maior – e assim deve ser – que a igreja instituição formada por homens, e quando a instituição se choca com os mínimos direitos fundamentais estampados na Constituição e na legislação, isso não pode ser ignorado pelo Judiciário. Portanto, nenhuma instituição pode ter regras próprias que ofendam o arcabouço jurídico constitucional e infraconstitucional, pois não é um mundo à parte e sim parte de um mundo com suas regras estabelecidas pelo Estado Democrático de Direito, que não permite a coisificação do humano, não permite o estado de exceção, bem como garante à todas e todos o trabalho digno.
*Ricardo Pereira de Freitas Guimarães é advogado especialista, mestre e doutor pela PUC-SP, titular da cadeira 81 da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e professor da especialização da PUC-SP (COGEAE) e dos programas de mestrado e doutorado da FADISD-SP