Tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 4.444/21, que, entre outras medidas, autoriza a União a transformar orlas e praias marítimas, estuarinas, lacustres e fluviais federais em Zonas Especiais de Uso Turístico (ZETUR). Com isso, o projeto acabaria com o uso público de até 10% da faixa de areia natural de cada município, limitando a circulação de pessoas pela praia. Essas áreas seriam ocupadas por hotéis, parques privados, clubes, marinas, empreendimentos imobiliários e outras atividades autorizadas pelo Ministério do Turismo.
“Aprovar esse projeto de lei é um retrocesso enorme em relação a todas as questões de gerenciamento costeiro que já temos e a todas as discussões da mudança do clima”, alerta Ronaldo Christofoletti, membro de Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN) e professor do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Hoje, temos ciência, conhecimento e legislação mundial que mostram que não devemos retirar espaços e ambientes costeiros, pois eles nos protegem frente aos impactos das mudanças climáticas e nos dão inúmeros benefícios”, frisa.
Outro importante ponto levantado por Alexander Turra, também membro da RECN e professor titular do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP), é que as praias e orlas pertencem à Zona Costeira, considerada Patrimônio Nacional pela Constituição Federal, e são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado sempre o livre acesso. “As atividades propostas no projeto podem excluir a passagem e o acesso das pessoas, levando a uma elitização do espaço costeiro, que por definição da Lei 7.661/88 e também da nossa Constituição é um dos espaços mais democráticos que temos”, ressalta.
A lei citada por Turra, que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, deixa claro que as praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado o livre acesso a elas e ao mar. O PL, no entanto, embora mantenha essa definição, quer proibir a entrada e a passagem de pessoas nos trechos considerados de interesse de segurança nacional e em áreas que viriam a ser classificadas como ZETUR, privatizando, assim, até 10% da orla brasileira.
“Ocupar as faixas de areia para fins de uso privado e turístico é uma ameaça a estes serviços, pois pode comprometer o complexo e delicado ecossistema costeiro. Diversos estudos alertam para o processo de erosão costeira que nossas praias vêm sofrendo, o que deverá se agravar com as previsões recentes de aumento do nível do mar e aumento da frequência de eventos extremos de ressacas do mar”, explica Adayse Bossolani, Secretária Executiva do Grupo de Trabalho para Uso e Conservação Marinha (GT-Mar), da Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso Nacional, apoiado pela Fundação Grupo Boticário, Instituto Linha D’Água, Instituto Costa Brasilis. Fazem parte do grupo deputados, senadores e membros da sociedade civil preocupados com a preservação e o uso sustentável da zona costeira e marinha brasileira.
Por suas dimensões continentais, o Brasil possui enorme variedade de paisagens ao longo de seus 7,5 mil quilômetros de litoral, desde as planícies formadas por marés e manguezais no litoral Norte; passando pelas falésias, dunas e estuários do Nordeste; pelas praias de enseadas com seus costões rochosos típicos do Sudeste; até chegar às longas praias arenosas do Sul do país. Isso sem contar com os deltas e baías, que abrigam enorme variedade de habitats e de usos e atividades socioeconômicas. Considerando essa extensão, 10% representariam cerca de 750 quilômetros, área superior aos litorais de São Paulo (622 km) e Paraná (98 km) juntos.
Os serviços ambientais que as praias oferecem são inúmeros: alimento, proteção contra inundação e erosão, recreação e lazer, herança cultural, dentre outros. No entanto, levantamentos técnicos do próprio governo, como os publicados no livro “Panorama da Erosão Costeira no Brasil”, apontam que cerca de 60% a 65% da linha de costa no Norte e Nordeste do país já estão sob processo erosivo. Nas regiões Sudeste e Sul, esse fenômeno ocorre em aproximadamente 20% do litoral.
Para Christofoletti, esses fatores tornam mais urgente a necessidade de ter um gerenciamento costeiro de forma integrada. “Quando a gente privatiza algumas partes e traz esse retalho na orla, dificulta a aplicação de outros instrumentos legais que auxiliam na gestão da costa.” O especialista acredita ser essencial que a população reflita o que significa ter uma boa relação com o oceano, pois, “uma boa relação não é estar mais próximo da praia nas férias e caminhar menos para chegar até o mar. O estar bem é estar em um lugar, sabendo que o meio ambiente está sendo conservado e respeitado”, conclui.