PEC da Reforma Administrativa ou o desmonte do serviço público
(Por Ricardo Prado Pires de Campos)
O Congresso Nacional brasileiro tem em pauta, neste ano, além das inúmeras propostas envolvendo o combate à pandemia da Covid-19, uma de muito relevo para toda a sociedade brasileira, embora seja percebida mais por alguns (o funcionalismo público) do que por outros (os trabalhadores e a população em geral).
Essa diferença de percepção decorre do fato de que, para os primeiros, os efeitos serão sentidos no contracheque, nos vencimentos, enquanto para os demais serão sentidos no serviço público ofertado, e essa diferença pode demorar um pouco para aparecer.
Grandes decisões possuem consequências no curto, mas também no médio prazo.
A Proposta de Emenda Constitucional nº 32, chamada de PEC da Reforma Administrativa, traz em seu cerne um projeto neoliberal que de “neo”, de novo, tem muito pouco, pois, em verdade, recupera ideias que já fizeram parte da história brasileira, no período chamado de velha República (1889-1930).
Ausência de concurso público para contratação dos servidores era a regra no Brasil de 1920. O impressionante é que isso volte a ser sugerido em 2020 (artigo 39-A da PEC 32/2020), e mais ainda como novidade.
O nepotismo, a contratação de parentes, foi a regra no Brasil por muitos séculos, o que começou a mudar com a Constituição de 1988, que passou a exigir o concurso público para quase todo o funcionalismo, e, mais recentemente, com a Súmula Vinculante nº 13 do Supremo Tribunal Federal, que passou a proibir o nepotismo.
“Enunciado
A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal. Data de Aprovação Sessão Plenária de 21/08/2008″.
No entanto, os adeptos da contratação de parentes no setor público continuam ativos, e já deram um jeitinho de tentar reincluir essa prática nefasta na mencionada reforma administrativa.
Talvez isso se deva ao fato de que as pessoas que não trabalham no Estado não tenham noção do quanto isso é improdutivo e nocivo ao setor público e a toda a sociedade.
A exigência de concurso público é a exigência de profissionalismo no setor. Ingressar no serviço público por concurso é entrar pela porta da frente, e não arrombando janelas. A exigência de concurso público traz em si muitas razões, mas algumas são muito evidentes: primeiro, a igualdade na oportunidade de acesso para toda a população, e não apenas aos amigos do rei; segundo, a profissionalização do setor, os candidatos que quiserem trabalhar no serviço público devem demonstrar condições técnicas para fazê-lo, precisam demonstrar competência prévia. O funcionário concursado não entra como estagiário, mas, sim, na maioria dos casos, entra para prestar um determinado serviço na saúde, na cátedra, na área jurídica ou financeira, e deve reunir condições técnicas para o desempenho da função. O concurso público deve assegurar que os melhores candidatos sejam contratados.
Dispensar o certame para contratar pessoas sem qualificação, apenas porque são amigos ou parentes do político de plantão, por certo, não redunda em melhoria do serviço público, ao contrário, teremos, no médio prazo, uma queda de qualificação assustadora. Só não será percebida de imediato porque a troca dos profissionais não se fará de uma vez só, mas no decorrer de vários anos, e por isso, apenas por isso, levará algum tempo para ser percebida pela sociedade. Os profissionais do setor público, por estarem envolvidos no dia a dia da Administração, perceberão a queda com muita rapidez.
Chamar a dispensa de concurso público de ideia neoliberal, realmente, é empregar o termo neo em sentido decorativo, como fake, para dar aparência de novidade, a algo que remonta aos primórdios da formação do estado. No momento em que as grandes empresas privadas estão profissionalizando suas administrações incluindo pessoas de fora da família dos controladores nos conselhos de administração, no setor público querem fazer o inverso, voltar a incluir os parentes, trazendo-os pelas portas dos fundos.
Não é apenas na dispensa do concurso público que a PEC da Reforma Administrativa representa um grande retrocesso, mas também na ideia neoliberal de que o Estado deve ter caráter de subsidiariedade (nova redação proposta ao artigo 37 da CF) ao setor privado na vida econômica do país.
Não há dúvida de que o Estado não precisa estar em todos os setores da economia, que o liberalismo econômico traz algumas vantagens de eficiência em certos setores, mas daí a concluir que o Estado é quase dispensável. Restando-lhe atividade meramente residual no setor econômico é de uma falta de realismo impressionante.
Os Estados Unidos da América do Norte tiveram sua colonização mais marcada pela iniciativa privada; o Brasil, desde seu descobrimento, tem o estado no comando das ações. A primeira carta, redigida por Pero Vaz de Caminha, para noticiar a descoberta do Brasil vai para o rei de Portugal, ou seja, é endereçada ao Estado. O sistema de colonização, fundado em capitanias hereditárias, foi determinado pelo Estado. Na época, o Estado português se dizia o “proprietário” das terras brasileiras.
Nunca fomos um país exclusivamente estatal, a iniciativa privada sempre esteve presente nos negócios do reino, mas sempre muito atrelada ao poder do estado, em muitos setores sempre dependente do poder do estado. A República veio com a ideia de mudar essa realidade, e separar o Estado dos negócios privados, mas a prática não evoluiu da mesmo forma que o discurso.
Na teoria, a atividade econômica é reservada a iniciativa privada, mas na prática, sem o Estado, a população fica à míngua.
Basta olhar alguns dados básicos da realidade. No setor de saúde cerca de dois terços da população dependem da saúde pública, do SUS. A iniciativa privada não chega a um terço da população. A maioria não tem condições de pagar planos de saúde, e sem recursos e sem o estado não terão assistência médica alguma, a prevalecer a referida proposta de emenda constitucional.
“A título de exemplos destacados da abrangência e do impacto do SUS, podem ser citados os seguintes marcos atingidos no período recente, sabendo-se que mais de 70% da população brasileira depende exclusivamente do SUS:
1) 87 milhões de brasileiros são acompanhados por 27 mil Equipes de Saúde da Família (ESF), presentes em 92% dos municípios, sendo a base para um novo modelo assistencial;
2) Cerca de 110 milhões de pessoas são atendidas por Agentes Comunitários de Saúde (ACS), que atuam em 95% dos municípios brasileiros.
3) O SUS realizou, em 2006, 2,3 bilhões de procedimentos ambulatoriais, mais de 300 milhões de consultas médicas e 2 milhões de partos;
4) Nas ações de maior complexidade, foram realizados 11 mil transplantes, 215 mil cirurgias cardíacas, 9 milhões de procedimentos de quimio e radioterapia e 11,3 milhões de internações” [1].
No setor educacional não é diferente. Cerca de 80% da população faz o ensino básico em escolas públicas. As escolas privadas representam menos de 20% da atividade educacional no país. Retirar o estado da educação levará a maior parte da população a ficar sem escola.
“No ano de 2019, foram registradas 47,9 milhões de matrículas nas 180,6 mil escolas de educação básica no Brasil.
Ao avaliar a distribuição das matrículas por dependência administrativa, percebe‐se uma maior dominância da rede municipal, que detém 48,1% das matrículas na educação básica, 0,4 ponto percentual (p.p.) a mais do que em 2018. A rede estadual, responsável por 32,0% das matrículas da educação básica em 2019, é a segunda maior. A rede privada obtém 19,1% e a federal tem uma participação inferior a 1% do total de matrículas nesse nível de ensino” (resumo técnico — “Censo da Educação 2019”, página 15) [2].
Como dizer que o Estado pode ser subsidiário em matéria educacional? Isso soa absolutamente fora da realidade.
Como alguém da maioria da população pode pretender fazer um curso superior numa grande universidade? No Brasil atual, as universidades federais, a USP, a Unicamp, a Unesp e uma série de outras universidades estaduais permitem esse acesso. E com a lei de cotas isso passou a ser mais efetivo para as classes pobres. Sem o Estado no ensino superior, uma vaga no ensino de ponta fica restrito às classes dominantes. A mobilidade social cai a quase zero nesse setor.
A renda média mensal da população brasileira não chega a US$ 1 mil, e esse valor é integramente consumido com alimentação, moradia e transporte. O que sobra para vestuário, lazer e despesas pessoais já é restrito para a maioria; pagar mensalidades escolares e plano de saúde pode ser o sonho de consumo da população, mas, nesse momento, apenas é acessível a uma parcela muito pequena.
No momento em que as redes privadas estiverem constituídas por todo o território nacional, no momento em que a população tiver um nível de renda que suporte essas despesas em seu orçamento, aí, sim, a realidade permitirá que o Estado possa encolher sua prestação de serviços médicos, educacionais e em inúmeras outras áreas.
Proposta de mudança na legislação precisa representar avanço na qualidade do serviço público, o que a dispensa de concurso está longe de ser, e estar amparada na possibilidade real de implantação, o que o tal caráter de subsidiariedade do setor público ainda está muito longe de ocorrer.
De resto, a proposta é muito ruim em inúmeros outros pontos, com destaque para a pretendida concentração de poderes no executivo. Prolixa, em muitos aspectos desnecessária e mal formulada, pede sua rejeição integral ou a formulação de substitutivo adequado que represente verdadeiro progresso e melhoria nos serviços públicos, e não apenas corte de salários para os servidores e corte dos serviços prestados para a população. Lembrando que hoje esses serviços públicos são gratuitos (ensino, saúde, segurança e outros), mas amanhã, a se aprovar a reforma, terão de ser pagos, pois o Estado irá deixar de prestá-los.
Ricardo Prado Pires de Campos é procurador de Justiça aposentado, presidente do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático e professor de Direito com mestrado em Processo Penal. Foi promotor do júri por uma década, tendo atuado no 1º Tribunal do Júri de São Paulo.