Os 140 anos da libertação dos escravos no Ceará “Nos portos do Ceará não se embarcam mais escravos”

  • As sociedades Perseverança e Porvir e Cearense Libertadora
  • O jornal Libertador
  • Maria Tomásia, a alma feminina da Abolição
  • União das mulheres
  • Acarape e o dia da libertação

A Lei Áurea no Ceará

  • Dragão do Mar e José do Patrocínio
  • Sátiro Dias

 

Texto: Zelito Magalhães

 

A Lei de 28 de setembro de 1871 determinou que as mulheres escravizadas, a partir daquela data, dariam à luz bebês livres. Era a Lei do Ventre Livre nº 2040/1871, também conhecida por Lei Rio Branco (José Maria da Silva Paranhos), que foi apresentada na Câmara dos Deputados em 12 de maio daquele ano e sancionada pela Princesa Isabel em 28 de setembro daquele ano.

 

Perseverança e Porvir

Em 28 de setembro de 1879, era instalada a sociedade Perseverança e Porvir, com sede na residência de José do Amaral, na antiga Rua Formosa (atualmente Barão do Rio Branco). Compunha-se de dez sócios que, além do objetivo – “tratar de negócios econômicos em proveito de seus fundadores” – eram também antiescravistas. Eram eles: José Correia do Amaral, José Teodorico de Castro, Joaquim José de Oliveira Filho, Antonio Dias Martins, Antonio Cruz Saldanha, José Barros da Silva, Francisco Florêncio de Araújo, Antonio Soares Teixeira Junior, Manuel Albano Filho e Alfredo Salgado. A entidade propunha-se a manter um fundo de participação através de contribuição de seus associados. Na sessão inaugural, alforriaram uma escravinha de dez anos de idade. Na ata da abertura da entidade, consta a presença de um sem número de senhoras da sociedade cearense, dentre outras, Elvira Pinha (professora e pianista).

 

João Cordeiro o indomável antiescravagista que presidiu a Libertadora Cearense.

A Cearense Libertadora

Designado pelo presidente provisório João Cordeiro, reúnem-se os vinte sócios da sociedade, no domingo de 30 de janeiro de 1881, na antiga Bolsa de Valores, à Praça José de Alencar.  Logo, João Cordeiro fê-los entrar em uma sala contígua daquela casa de comércio a que ele havia dado o nome de Sala de Aço. Em uma mesa grande, coberta com um pano preto e sobre esta acesas  duas velas das lanternas, o presidente, que ocupava o centro da cabeceira, levanta-se e, arrancando da cava do colete um punhal, atira-o com força no meio da mesa, onde ficou cravado, oscilando sinistramente ao reflexo das luzes, e disse: “Meus amigos, exijo de cada um de nós um juramento sobre este punhal, para matar ou morrer, se for preciso, em bem da abolição dos escravos. Vamos travar uma luta horrível com o governo, e por isso está em tempo de se retirar aquele que for amigo do mesmo governo ou dele for dependente. Quem não tiver coragem para tanto, pode sair, que ainda sai em tempo; e logo se retiraram onze, cujos nomes por conveniência ocultamos do desprezo público”, testemunho de Antônio Bezerra.  Acrescenta este que juraram, de acordo com o cargo que cada um exercia provisoriamente: o presidente João Cordeiro, o vice-presidente José do Amaral, o 1º secretário Dr. Frederico Borges, o 2º dito Antônio Bezerra, os diretores Antônio Martins, José Teodorico, José Barros, José Marrocos e Isac do Amaral. João Cordeiro ditou ao secretário os seguintes desconcertantes estatutos: Art. 1º – Um por todos e todos por um. Parágrafo Único – A sociedade libertará escravos por todos os meios ao seu alcance. Datados na Sala de Aço, em 30 de janeiro de 1881, referidos estatutos foram assinados pelos presentes.

E assim, foram os “Doze apóstolos da santa causa” – na expressão de um deles.

O aracatiense Francisco José do Nascimento, Dragão do Mar.

O jornal Libertador

Em menos de um mês de criação da sociedade Cearense Libertadora, tratou a direção de fazer o seu jornal Libertador, que tinha como redatores: Antônio Martins, Antônio Bezerra de Menezes e José Teles Marrocos e outros colaboradores, como Justiniano de Serpa, Martinho Rodrigues, Almino Álvares Afonso, Abel Garcia e João Lopes. Na sua edição de 15 de janeiro de 1881, o órgão estampa o Editorial de primeira página: Abaixo a escravidão – Concidadãos! Em meio das grandes ideias que nobilitam o nosso século, uma grande vergonha faz ainda corar a nossa querida pátria. É a vergonha da escravidão! E ser o Brazil, este paiz immenso, como immenso é seu territorio, livre como livres sam suas matas seculares, cujas frondes topetam ás nuvens, altivo, como altivas sam as cataduplas as aguas de seus rios-oceanos, rico como rica é a vegetação de seu solo, magestoso, como magestosa é a perspectiva de sua naturesa, que há de conter em seu seio o elemento servil, elemento de vergonha , que o desconceitua na opinião das suas ações civilisadas? Oh! não; é tempo que desappareça do meio de nós esta infamia que retarda o nosso progresso e nos distancia do lugar que compete-nos no congresso das nações. Em quanto a liberdade  não congraçar-nos no mesmo amplexo, como irmãos que somos perante Deus e a humanidade, perante a civilisação e o progresso, seremos um povo sem autonomia, sem consciencia do nosso valor, por quanto amesquinha a nossa grandeza, as instituições liberaes que governam, o desequilibrio de acção, o poderio do forte contra o fraco, do senhor contra o escravo, cuja permanencia criminosa, a despeito dos brados de indignação da imprensa livre, atira ainda á face da nação a repitição de scenas de horrores, praticadas a sangue frio e em pleno século XIX. Oh! Não; a escravidão não tem mais rasão de ser; desapparecida de todas as nações que com grandes sacrificios levaram-na de seu solo, desapparecerá tambem do Brazil, que deve orgulhar-se de não ceder-lhes o passo na expansão dos sentimentos generosos. Só assim teremos fé no futuro que se lhe desenrola deslumbrante na atitude soberana, que deve assumir como nação culta e que dam-lhe direito as forças vitaes de que dispõe. Está mais que provado que só o trabalho livre é que ennobrece, e não aquele que augmenta a fortuna publica amontoada á custa das lagrimas e do sangue dos desgraçados.  Concidadãos! Empregaremos a regeneração de esforços e unidos num só pensamento de escravidão!

Maria Tomásia abolicionista

A sobralense Maria Tomásia Filgueira Lima tornou-se reconhecidamente a alma feminina da campanha abolicionista no Ceará. Ocupou a presidência da Cearenses Libertadoras, organizada no dia 25 de março de 1884.  em uma reunião na chácara de José do Amaral, no Benfica, na qual esteve presente José do Patrocínio. No final da primeira reunião, elas assinaram 12 cartas de alforria e, posteriormente, conseguiram que os senhores de engenho assinassem mais 72. A sociedade reunia 22 mulheres de famílias fluentes que defendiam o fim da escravidão no Ceará.  O hino da sociedade Cearenses Libertadoras, letra de Frederico Severo e melodia de João Moreira da Costa, foi executado nos salões do Clube Cearense.  Ei-lo:

 

Eia! Às armas soldados dos livres

Na vanguarda já soa o tambor!

Eis o mote do nosso estandarte:

– Liberdade aos cativos e amor.

 

Para sempre se apague da face

Da formosa auriverde bandeira

Esse negro borrão que nos mancha

E que avilta a nossa a nação brasileira (…)

 

“E um coro harmonioso e brilhante das melhores vozes repetia com a mais arrebatadora mestria”:

Bis – Para sempre se apague da face

Da formosa auriverde bandeira…

O presidente vai, ao som da ruidosa harmonia, entregando uma a uma as 35 cartas de liberdade. Recebendo o precioso quirógrafo, os libertandos lhe imprimiam o ósculo de seu amor, e depunham aos pés do Sr. João Cordeiro um lindo bouquet de flores. Vítimas de impetuosa sensação de alegria e de felicidade, alguns libertandos pareciam desmaiar ao contanto deslumbrante da liberdade. Foi preciso ampará-los: ou duvidavam de sua felicidade, ou ela matava-os de contentamento inefável. E quando o estandarte da Cearenses Libertadoras tremulava, espraiava-se no espaço a última estrofe do hino:

 

E que a água altaneira que voa

Pelo dorso dos cerros azuis

Leve aos mastros, na garra gigante

A bandeira banhada de luz!” 

José Carlos do Patrocínio, abolicionista, que defendeu no Ceará e no Brasil a causa libertária.

A libertação em Acarape

A etimologia é de dois elementos mórficos: Acará= peixe + Pe= caminho ou canal, na interpretação tupi de José de Alencar. Fora Acarape escolhido para nele fincar-se, no solo da pátria enodoada de escravatura, o primeiro alicerce da esperada libertação por ser o lugarejo com o menor número do elemento servil. Por Lei provincial Nº 2.167, de 1889, foi elevada à categoria de cidade com o nome de Redenção. Rosal da Liberdade foi o professor e jornalista que a qualificou com o predicado.  Deixando a capital às sete horas da manhã, a composição resvalou sobre trilhos da ferrovia, às dez e meia tinha vencido os 66 quilômetros da distância, derramando na estaçãozinha do Cala-Boca (hoje denominada Acarape) aquele grupo de predestinados. A Praça da Matriz semelhava a um jardim: leques, palmeiras, crótons, arbustos floridos, bandeiras de variadas cores a tremular nas fachadas dos prédios. As notas do Hino da Libertação soavam ao ouvido da turba já arrebatada de entusiasmo. O local já estava apinhado do povo de todos os sítios e das localidades vizinhas.

A sessão começou a solenizar a conquista que se alcançava. A cadeira da presidência é oferecida ao General Antônio Tibúrcio Ferreira de Sousa, que declina das honras porque deseja vê-la ocupada por um cearense altamente ilustre, estadista do Império, o jurisconsulto e conselheiro, o aracatiense José Liberato Barroso. A sessão é aberta com a fala do jornalista, carica de Campo Grande, José do Patrocínio: “Para se conhecer da grandeza desta festa, basta vermos à cabeceira da mesa o Parlamento, representado pelo Exmo. Sr. Conselheiro Liberato Barroso – o Parlamento é a ideia. À sua direita está a espada vencedora – o Exército Brasileiro, representado  na pessoa do insigne General Antônio Tibúrcio Ferreira de Sousa. À sua esquerda, a Igreja Católica, que convence das verdades eternas, representada condignamente pelo Revmo. Padre Silveira Guerra. Portanto, senhores, temos aqui três coisas distintas: a ideia que ilumina, a espada que vence e o sacerdote que convence”. O dia do Acarape abria no Ceará um calendário novo, cuja última hora iria ser a da meia-noite de 25 de março de 1884. Um poeta, outro filho da gleba, cantou:

Era o toque final do clarim da vitória/ Que ecoava da cidade aos longínquos desertos. / Uns riam de prazer – outros a extinta escória/ Dos déspotas, depois achincalham, libertos. Foram férreos titãs da odisseia gloriosa/ Cinco anos a seguir, Nabuco, Sousa Dantas/ Paranhos/ Nascimento, Amaral, Rui Barbosa/ E a Princesa Isabel – a mais santa das santas!

 

A Lei Áurea no Ceará

Governava a Província o Dr. Antônio Caio da Silva Prado, paulista de família ilustrada, senhores de cativos, o que não impediu de solidar-se com acontecimento tão memorável. Fora nomeado em 25 de março de 1888, tomando posse no dia 21 de abril, mas foi desgraçadamente efêmera a sua gestão, pois, de febre amarela, faleceu no dia 20 de março do ano seguinte. Durante a sua administração foi que entrou em vigor a Lei Nº 3.353, de 13 de maio de 1888. Na noite do dia 14 foi oferecido no Palácio do Governo, um concorrido e movimentado sarau às melhores classes da população da cidade, no qual foram servidos “excelentes manjares, vinhos finíssimos e licores” e recebia com a distinção do homem altamente educado os seus inúmeros convidados. No dia 30 de maio, foi-lhe oferecido no Clube Iracema um baile suntuoso, cujos convidados eram assinados pelo Barão de Ibiapaba, Barão de Aquirás, Dr. Nogueira Acioly John Mackee, Comendador Teodorico e João Lopes. Nas ruas eram constantes as passeatas, ao som de bandas de música e ao estouro dos fogos de artifícios, as quais terminaram às 8 horas da noite, no Passeio Público, este profusamente iluminado. Oradores se sucediam numa demonstração do calor de seus discursos e patriotismo. Na Catedral oficiou-se Te Deum, celebrado pelo Bispo D. Joaquim José Vieira e na Câmara Municipal, sob a presidência do Dr. Manuel Teófilo Gaspar de Oliveira, sessão extraordinária e solene, na qual falaram entusiasticamente diversos camarários. Entre eles, o vereador João Brígido, que, após algumas considerações sobre o objeto da sessão, leu uma proposta de mensagem, unanimemente aprovada. “Câmara Municipal de Fortaleza, meus Senhores, interpretando os sentimentos de seus munícipes e da população de toda a Província, vem trazer a Vossa Majestade Imperial a segurança da mais profunda gratidão pela sanção prestada ao voto nacional para a extinção do cativeiro no Império.

 

Patrocínio e Dragão do Mar

A bordo do vapor “Ceará”, José do Patrocínio chegou ao trapiche de desembarque de Fortaleza, na manhã de janeiro de 1883. “Quando ele pulou na ponte – recorda Elvira Pinho – um escravo o beijou e nós lhe cobrimos a cabeça de rosas, o que havia de melhor nos jardins da cidade. Chamaram-lhe de Marechal Negro. Lembro-me do seu encontro com Chico da Matilde. Os dois tinham quase a mesma altura, sendo que a barba de Patrocínio era mais fechada. “– Então, companheiro, o porto está mesmo bloqueado?” Nascimento respondeu com firmeza: “–Não há força neste mundo que o faça reabrir ao tráfico negreiro!”. Na ocasião, foi lembrada a frase atribuída ao cearense Pedro Artur de Vasconcelos: “No porto do Ceará não se embarca mais escravos”. No Hotel do Norte, ao lado do Passeio Público, ao som da música da banda da Polícia, a recepção é fremente. Durante o almoço, em tom de banquete, Patrocínio é saudado por Frederico Borges, por Almino Álvares Afonso, Lourenço Pessoa e o médico João da Rocha Moreira, em rasgados elogios. O Dr. Moreira, dando o cunho simbólico da festa, alforriou o seu escravo Antônio. Em seguida, Patrocínio e Chico da Matilde, acompanhados pelos membros das sociedades Cearenses Libertadoras e Clube dos Libertos, dirigiram-se ao escritório desta. O Dr. João Moreira, tocado ao sentimento do Tigre, lhe dedicou o Soneto que finaliza com este terceto: Por vós e pelos meus, na festa da igualdade/ Compareço também – e inteira liberdade/ A um que foi escravo, ao pobre Antônio dou!

 

Sátiro Dias 

Depoimento do Dr. Manuel Sátiro de Oliveira Dias, que presidiu o Ceará de agosto de 1883 a maio de 1884: “Quando passei ao meu sucessor a presidência do Ceará, em 31 de maio de 1884, deixei escritas em documento oficial estas palavras a respeito do grande acontecimento a libertação dos escravos naquela província do Império: Convém estudar de perto, sem paixão e refletidamente, a história da emancipação do Ceará, examinando as causas naturais e de outra ordem que para ela concorreram, e estou certo de que justiça se fará, pelo menos ao aspecto geral da questão, que por alguns há sido mal apreciada”. O 25 de Março de 1884 e o 13 de Maio de 1888 se equivalem e completam. Sem o primeiro, o segundo não chegaria tão cedo; sem ele, não teria aquele tamanho relevo na história pátria; e neste sentido, vale a pena reler o altíssimo juízo de Joaquim Nabuco, proferido no Congresso antiescravista de Paris, em 1900: “Os escravos do Norte, disse ele, eram exportados em massa para o Sul, onde os preços eram quádruplos. No Ceará, para chegarem a bordo dos paquetes que os levavam para o mercado de venda, tinham que ser trazidos na pequena embarcação chamada jangada. Movidos pelos abolicionistas, cujos chefes eram João Cordeiro e Amaral, os jangadeiros com um Nascimento à frente, negavam-se a transportar a carga humana. Já eram livres, naquela data, os municípios de Fortaleza, Acarape, Pacatuba, S. Francisco, Icó, Baturité, Maranguape e as vilas de S. João do Príncipe, Soure e Messejana. Chegou então a hora da grande consagração. A 25 de março de 1884, realizou-se na Praça Castro Carreira, e em presença de toda população da Fortaleza, a majestosa festa da “Libertação, na qual, para glória imortal do povo cearense, e em nome e pela vontade desse mesmo povo, proclamei ao país e ao mundo – que a Província do Ceará não possuía mais escravos!” Foram estas as palavras textuais com que fechei o meu discurso naquela solenidade inolvidável. Acusaram-me até de haver decretado “a independência do território cearense!”.

 

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(*) Notas do autor:

– O baiano Manuel Sátiro de Oliveira Dias que presidiu o Ceará à época da libertação dos escravos em 25 de março de 1884.

– O aracatiense Francisco José do Nascimento, Dragão do Mar.

– João Cordeiro,  o indomável antiescravagista que presidiu a Libertadora Cearense.

 

 

 

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