O festival que muda vidas e exporta talentos

Músicos contam como o Festival Eleazar de Carvalho impulsionou suas carreiras no Brasil e no mundo

O evento, que revela talentos e transforma vidas há 25 edições, retoma formato presencial de 9 a 23 de julho, na Unifor (Foto: Ares Soares)

Eleazar de Carvalho, um dos maiores maestros do Brasil, podia até parecer sisudo, mas estava sempre disposto a ajudar os outros. Foi o único brasileiro a reger a orquestra Filarmônica de Viena e nem sua consolidada carreira internacional o fez olhar apenas para si. O “maestro”, como é chamado por seus pares, sempre esteve preocupado também em formar as novas gerações, ajudar os jovens e transformar vidas.

Conseguiu tudo isso com o Festival Eleazar de Carvalho, que nasceu a partir do Festival de Campos do Jordão, em São Paulo. O maestro havia sido convidado pelo governo paulista para conhecer o evento de música erudita na cidade e percebeu que se tratava apenas de audições.

Convenceu então o Estado a lhe apoiar na montagem de um festival de imersão, nos moldes internacionais, capaz de unir festa e aprendizagem de música. Era um formato trazido de Tanglewood, nos Estados Unidos, onde o maestro estudou nos anos 1940 e foi sucessor de seu mestre, Sergei Koussewitzky. No novo modelo pedagógico, músicos bolsistas teriam acesso também a uma formação com mestres e doutores em seus instrumentos.

Um oásis erudito no Brasil

Eleazar criou, assim, um oásis erudito em um Brasil desacostumado a valorizar a cultura, que depois foi levado a outras cidades do país, como Itu, Gramado e João Pessoa. Já se vão mais de duas décadas desde que o festival desembarcou em Fortaleza pelas mãos de Sônia Muniz, viúva do maestro, pianista e diretora artística do Festival. “Ele queria muito levar o Festival para o Ceará, mas faleceu antes. Falei: eu vou levar. Graças a Deus consegui fazer essa homenagem a ele”, conta.

Na capital cearense, o evento ganhou o apoio da Universidade de Fortaleza, vinculada à Fundação Edson Queiroz. E é lá que o Festival retoma neste ano o formato presencial, após três edições remotas por conta da pandemia. Acontece de 9 a 23 de julho, levando concertos e formações musicais ao campus da Unifor. É a 25ª edição do projeto revelador de talentos.

“O maestro sempre quis levar o Festival para o Ceará. Foi difícil, mas graças ao [chanceler] Airton Queiroz foi possível. Ele colocou a Unifor à disposição. E ficava ouvindo as aulas de música, quietinho, parecia um aluno ali, apesar da potência que ele era”, lembra Sônia.


“O Festival mostra novos talentos e dissemina a cultura musical. Os alunos se apresentam nos concertos, mas têm professores que falam da história da música, há uma parte pedagógica. O evento também abre novas coisas para o pessoal de Fortaleza que quer assistir e ajuda a desenvolver o público” — Sônia Muniz, diretora artística do Festival, pianista e viúva de Eleazar de Carvalho

Eleazar tinha consciência do tamanho de sua ação ao montar o Festival, ainda lá em São Paulo. Costumava dizer aos alunos que estava ali entregando a primeira chave e que caberia a eles usá-la para abrir os “cadeados” nas portas do mundo da música.

Quem entendeu a mensagem abraçou a disciplina nos estudos e aproveitou os caminhos que surgiram da oportunidade de conhecer renomados músicos nacionais e estrangeiros no Festival, especialmente em Fortaleza. Alguns dos que passaram por este oásis erudito contam, a seguir, como o evento ajudou a impulsionar suas carreiras no Brasil e no mundo.

De Iguatu para o mundo com um violoncelo

Ítalo Nogueira cresceu em Iguatu, uma cidade de pouco mais de 100 mil habitantes no sertão cearense, onde a música clássica era coisa rara. Tinha 13 anos quando colocou na cabeça que queria aprender violão para tocar as badaladas músicas de pop rock, moda no início dos anos 2000. Por isso, quando soube que a primeira escola de música da cidade estava selecionando alunos, não titubeou em participar.


Ítalo Nogueira, ex-aluno, retorna ao Festival como professor (Foto: Arquivo pessoal)

Chegou na Escola de Música Erudita Eleazar de Carvalho sem entender direito do que se tratava para fazer a prova de admissão e precisou colar de um colega para conseguir ser aprovado. Foi aí que descobriu que teria de escolher um instrumento clássico e deixar o violão de lado, mas não poderia perder a oportunidade de estudar música. “Pelo nome, achei que o violoncelo tinha a ver com violão e escolhi”, conta, rindo. Mas se apaixonou pelo instrumento.

Ítalo se dedicou tanto que, no ano seguinte, conseguiu uma bolsa para participar do Festival Eleazar de Carvalho, em Fortaleza. “Ali vi que tinha outro mundo. Lá em Iguatu, não tinha concertos, só os que a gente fazia”, diz. Ele lembra de ter se encantado com o Teatro Celina Queiroz e com as apresentações de músicos renomados.

Foi ali que cantou pela primeira vez junto a um coral profissional. “Foi um choque. Toda noite eu via um concerto. Era a única oportunidade que eu tinha”, rememora. Também era uma chance de ter contato com professores que ensinavam especificamente seu instrumento, já que em Iguatu as aulas eram dadas principalmente por violinistas.

“Em 2005, a internet não era bem difundida assim conseguirmos material didático, então o Festival era uma maneira de nos encontrarmos com outros alunos e professores e conseguir material para passar o ano estudando. Aí, no outro ano, voltávamos ao festival com coisas para apresentar”, conta.


“O Festival Eleazar de Carvalho me marcou como nenhum outro lugar me marcou. Foi lá que ganhei meu primeiro instrumento, em 2007, por ter me destacado. Também consegui bolsa para estudar inglês e conheci pessoas que depois me deram a chance de estudar fora do país. O Festival é a minha base” — Ítalo Nogueira, músico nas orquestras Sinfônica da Bahia e da Universidade Federal da Bahia

A vida de Ítalo, conterrâneo do maestro Eleazar, foi transformada pelo projeto. Lá, ganhou seu primeiro violoncelo e uma bolsa para estudar inglês. Estudou um tempo na França e, na volta, decidiu fazer graduação na Paraíba. Em 2017, foi aprovado no concurso da Orquestra Sinfônica da Bahia e da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Hoje, trabalha em ambas, além de desenvolver um trabalho nas redes sociais tocando músicas populares para tentar levar o violoncelo a um público maior. Aos 31 anos, Ítalo agora se prepara para retornar ao Festival que o formou como professor e devolver o aprendizado a novas gerações. “Estou superemocionado porque passa um filme na minha cabeça. Vai ser emocionante tocar de novo no [Teatro] Celina Queiroz”, diz.

Uma luz no fim do túnel para viver da música

O Festival está no centro das oportunidades que levaram Ederson Fernandes a deixar o bairro Pirambu, em Fortaleza, e ir viver em São Paulo — onde hoje atua como músico da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e chefe do naipe das violas da Bachiana Filarmônica SESI/SP, sob a batuta do maestro João Carlos Martins.


Ederson, no violino mais à direita, durante apresentação com a Orquestra (Foto: Arquivo pessoal)

Ele começou os estudos na ONG “Centro de Iniciação Profissional” e foi por meio dela que ficou sabendo do Festival. “Logo fiquei super empolgado em participar, visto que eu teria aulas com professores incríveis, tocaria na orquestra sinfônica do Festival e [viveria] um intercâmbio com os outros alunos que vinham do Brasil inteiro”, conta.

A questão era que, para isso, precisaria da autorização de seus pais, que não enxergavam a música como uma coisa séria ou algo que fosse dar algum futuro. Mas aí um funcionário da ONG conversou com o pai dele e conseguiu a autorização, em 2002. Desde então, Ederson participou de ao menos três edições, inclusive como professor em uma delas.

Foi no Festival que ele conheceu o professor Alexandre Razera, que o convidou para estudar com ele em São Paulo. “Esse convite mudou completamente a minha vida e me fez o músico que sou hoje”, celebra.

Antes de levá-lo, o próprio instrutor pediu que Ederson levasse seu genitor a um dos concertos. “Razera falou para ele que eu tinha muito talento, que tudo o que tinha para aprender em Fortaleza eu já tinha aprendido, agora precisava me aperfeiçoar fora da minha cidade natal e, novamente, me fez o convite de vir estudar com ele aqui em São Paulo. E aqui estou desde então”, conta.

“Se eu não tivesse participado do Festival, muito provavelmente eu teria largado a música super cedo e sabe lá Deus o que eu estaria fazendo da minha vida”, acrescenta o violonista, que hoje trabalha na orquestra que foi regida e dirigida por anos pelo maestro Eleazar.


“O Festival exerce um papel importantíssimo para a cultura não só do Ceará, mas para o país como um todo. Ele cultiva talentos e é um celeiro importantíssimo para nutrir os artistas eruditos cearenses, que são muito carentes no lado musical. […] O Festival vem e traz uma luz no fim do túnel para esses artistas” — Ederson Fernandes, músico da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo

A chance de reger uma orquestra pela primeira vez

Até mesmo quem vem do Sudeste tem sua vida atravessada pela iniciativa. O paulista Rafael Luz já estudava piano e violino e fazia faculdade de música, mas não se conformava que sua universidade não tinha uma orquestra onde pudesse atuar como regente. Decidiu então buscar festivais de música pelo país e acabou vindo participar do Festival em 2001.

Lá, encontrou muita gente que compartilhava os mesmos interesses, vinda de muitos lugares do Brasil. Todos se juntavam ao longo de algumas semanas com o mesmo foco: estudar música e melhorar.  “A gente cresce como pessoa mesmo”, diz. “Foi neste evento que tive a primeira oportunidade de reger uma orquestra grande”, lembra ele. A oportunidade veio graças ao professor, o maestro Lanfranco Marcelletti.


Rafael em sua apresentação no Festival Eleazar de Carvalho (Foto: Arquivo pessoal)

A partir daí, Rafael passou a participar praticamente todo ano do Festival, onde tinha contato com renomados músicos nacionais e internacionais. Foi lá que conheceu o regente norte-americano Maurice Perez. Depois de alguns dias o ajudando a “se virar pela cidade” com seu inglês, Rafael foi convidado a estudar com ele em Nova Iorque, para onde se mudou no ano seguinte.

“A partir disso, fui explorando”, conta. O desejo de seguir a vida acadêmica o levou a fazer um doutorado em Toronto, no Canadá. No meio do caminho, conheceu a North York Concert Orchestra e lá está há nove anos. Além de aluno do Festival Eleazar de Carvalho, ele retornou ao evento outras vezes, tanto como professor de regência quanto para trabalhar na parte administrativa.


“O Festival proporciona uma troca de cultura e informação. Ele me deu a oportunidade de estar com a orquestra em mãos e praticar de fato. O flautista tem a flauta, vai pra casa e estuda o instrumento dele. O regente não tem uma orquestra. Ele precisa que as pessoas estejam juntas para praticar” — Rafael Luz, diretor da North York Concert Orchestra

Um festival que “caiu como ouro”

O violinista Humberto de Castro participou mais de uma dezena de vezes do Festival Eleazar de Carvalho. Encantava-se com a presença de renomados músicos do Brasil e do exterior e com o fato de que mesmo os estudantes eram tratados e respeitados como profissionais. “Esse Festival caiu como ouro para o pessoal do Ceará”, diz.


“Por conta do Ceará ser um estado onde a cultura nunca foi o ponto mais forte, o Festival era uma forma de ter contato com os maiores do mundo. Quem tinha disciplina e colocou em prática, se desenvolveu” — Humberto de Castro, músico violinista

Humberto conta que até sua forma de tocar o violino e segurar o arco mudou com as técnicas que ia aprendendo a cada edição. “Conheci muita gente, toquei em orquestra, criei repertório para fazer concurso e adquiri experiência para tocar com músicos internacionais”, enumera. “É como o maestro falava: o Festival é a chave e vocês vão abrir os cadeados de vocês”.

Humberto segue abrindo os “cadeados” até hoje. Foi conhecendo gente e foi parar nos Estados Unidos, onde vive e trabalha como músico, participando de shows e eventos com a comunidade judaica. Mas não perde a chance de se apresentar também no metrô.

“É o que mais gosto”, confidencia ele. E por que? “As pessoas só te remuneram se gostam. Já ganhei um dólar, mas já ganhei também 100, 200 dólares porque gostaram do meu trabalho”, revela.

O campus vira uma orquestra a céu aberto

O legado de toda essa história volta a ser exposto ao público neste mês de julho. Durante duas semanas, o campus da Unifor vai virar uma verdadeira orquestra a céu aberto. Neste ano, a vigésima quinta edição do evento se soma às comemorações pelos 50 anos da Universidade, fortalecendo uma parceria histórica no fomento à arte e à cultura.


“Um traço bastante importante desta parceria entre a Fundação Eleazar de Carvalho e a Unifor é do Festival Eleazar de Carvalho acontecer dentro da Universidade de Fortaleza. É a possibilidade mesmo da democratização, de acesso, de formação de plateia, de público e de formação de músicos” — Adriana Helena, chefe da Divisão de Arte e Cultura da Unifor

Adriana Helena, chefe da Divisão de Arte e Cultura da Unifor, lembra que o evento reúne músicos não só do Ceará, mas de vários outros estados do país. É um espaço não só de formação de instrumentistas, mas também de plateia, proporcionando gratuitamente concertos ao público em geral todas as noites, no Teatro Celina Queiroz.

De 9 a 23 de julho, haverá oficinas para o aperfeiçoamento técnico com renomados mestres e cursos de violino, viola, violoncelo, contrabaixo, flauta, clarinete, trompete, trompa, trombone, percussão, piano e violão clássico. O evento também celebrará os 80 anos de nascimento do compositor Almeida Prado e os 150 anos de Sergei Rachmaninoff.

É interessante a gente passear no campus da Unifor no mês de julho porque ele fica tomado por muitos sons, muitos acordes, professores, alunos. Há efervescência da música clássica acontecendo dentro da Universidade de Fortaleza, um ambiente propício por ser esse local produtor de conhecimento”, finaliza Adriana. (Fonte: site Unifor)

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