Nunca foi sobre igualdade: na reforma eleitoral, participação de mulheres vira moeda de troca
(Hannah Maruci Aflalo*)
Uma das reformas eleitorais mais profundas dos últimos anos é feita em tempo recorde, sem a participação popular e sem transparência, mas com muita pressa. A corrida é para que a reforma eleitoral seja aprovada antes de outubro, prazo máximo para que as novas regras passem a valer já nas eleições de 2022.
Entre as principais mudanças discutidas está a alteração do sistema eleitoral de representação proporcional para um sistema distrital. Também conhecido como distritão, esse sistema já foi analisado e apontado por cientistas políticos e advogados eleitorais como antidemocrático e ineficiente. No entanto, a popularidade do distritão não parece ser abalada entre os parlamentares eleitos que veem nos defeitos do sistema suas melhores qualidades, isto é, manutenção do poder, o favorecimento à reeleição e baixa representatividade.
Com a já ínfima participação das mulheres em jogo (atualmente apenas 15% no Congresso Nacional), a discussão sobre cotas de gênero surge como moeda de troca para reparar os danos trazidos pelo distritão. Em uma troca completamente desproporcional, medidas conservadoras, como as cotas de reserva de assentos a percentuais baixíssimos, se apresentam como avanços e tiram o foco dos retrocessos implicados pela troca de sistema eleitoral. Dessa forma, o distritão vai passando enquanto migalhas são comemoradas como “conquistas das mulheres”.
Tocada pela deputada federal Renata Abreu (Podemos/SP), que vem se posicionando nos últimos anos de forma abertamente contrária às cotas de candidaturas sem grandes constrangimentos, a comissão que analisa a PEC 125 chegou a propor a extinção da obrigatoriedade das cotas de 30%, existentes desde 1997, como contrapartida para a reserva de assentos de 15% para mulheres, porcentagem que já corresponde à média nacional nas Casas Legislativas e que não representaria real avanço em direção à paridade de gênero.
Qualquer medida que recue nos 30% de candidaturas ou proponha porcentagens abaixo disso, ainda que para a reserva de cadeiras, é um retrocesso. O PL 1.951/2021, aprovado no Senado, faz os dois ao mesmo tempo, retira a obrigatoriedade de uma regra que demorou mais de 20 anos para que fosse cumprida pelos partidos políticos e institui um percentual gradual de reserva de cadeiras, iniciando em 18% e atingindo 30%, apenas em 2040. Considerando que hoje a média mundial de participação de mulheres nas casas legislativas é de 30%, essa nova regra nos atrasa cerca de vinte anos mais, fazendo com que a paridade fique ainda mais distante.
Na contramão das medidas implementadas em 2017, via resoluções judiciais e que tinham um objetivo explícito de promover a correção do desbalanço de gênero e raça, o projeto também instituiu a anistia aos partidos políticos que não cumpriram a distribuição financeira com paridade de raça e as cotas de financiamento de gênero. Em se tratando de partidos políticos e ações afirmativas, é possível observar dois padrões. Primeiramente que sem obrigatoriedade e sem sanções, as regras não são cumpridas. Em segundo lugar, os mínimos são automaticamente transformados em teto. Assim, é evidente que as novas regras eleitorais que avançam rapidamente tanto na Câmara quanto no Senado, definitivamente não são sobre igualdade.
O cenário que podemos vislumbrar com as mudanças propostas é, na melhor das hipóteses, de manutenção do status quo: representatividade de gênero caminhando a passos lentos e o consequente aprofundamento, da desigualdade étnica e racial. Porém, é preciso ressaltar que não avançar sobre uma situação de extrema desigualdade que perdura há séculos na política brasileira, é sim retroceder. A equação da igualdade não tem mistério. Para alcançá-la, é preciso que aqueles que estão sobre representados nas Casas Legislativas deem lugar aos historicamente sub-representados, mas nessa dança das cadeiras, ninguém quer se levantar.
*Hannah Maruci Aflalo é professora de Ciência Política na UFRJ. Doutoranda e mestra em Ciência Política pela USP. Formadora e palestrante sobre política, gênero e diversidade. Cofundadora d’A Tenda das Candidatas, projeto que treina e dá assessoria para candidatas.