“Não transforme o meu Texas em uma Califórnia” – relatos de minha viagem ao Texas
Jacir Venturi
Dos 50 estados norte-americanos, o Texas é atualmente o mais referenciado por sua cultura, história, extensão territorial e população, contando com elevado grau de desenvolvimento e de aporte de investimentos. Há, inclusive, um grande movimento de transferência das instalações das big techs da Califórnia para o Texas, como Apple, IBM, Dell, Amazon, Google, Facebook, HP Enterprise e, recentemente, Tesla. Os principais motivos dessa migração para o Texas são menores impostos, melhor qualidade de vida e custos mais módicos, além de infraestrutura e ambiente mais amigáveis em virtude de uma regulamentação mais racional e uma menor burocracia a ser vencida.
Porém, diante desse influxo, parte da população teme perder as tradições e valores, dando luz a um slogan que se vê em souvenirs e adesivos de automóveis: “Don’t California my Texas”. Afinal, o texano raiz tem ojeriza à Califórnia, estado excessivamente liberal nos costumes e com um viés político-econômico mais à esquerda, enquanto o Texas é mais conservador e mais liberal na economia. No contexto do bipartidarismo reinante naquelas plagas, tipicamente a Califórnia é Democrata e o Texas é Republicano.
A população do Texas é de aproximadamente 31 milhões de habitantes, segundo estado mais populoso daquele país, atrás apenas da rivalizada Califórnia. Quanto à extensão territorial, é 2,5 vezes maior que o Paraná, o que o torna o segundo maior dos EUA, perdendo apenas para o Alasca. Quanto ao PIB, gerou em 2023 um total de 2,37 trilhões de dólares, o que, para fins de comparação, é ligeiramente maior do que o resultado agregado de todo o Brasil, que atingiu um total de 2,13 trilhões de dólares de acordo com o FMI. Mas nesse quesito a Califórnia – sempre ela – ganha com folga com seus 3,37 trilhões.
Para os que conhecem a fama da cidade paulista de Itu, é similar a forma de pensar dos texanos, para os quais o estado é em tudo avantajado. E em relação ao cultivo de referências históricas, consuetudinárias (costumes) e valores culturais, muito lembram o nosso Rio Grande do Sul. Em tom de blague, isso transparece até nos chifres proeminentes do emblemático gado bovino longhorn (cornos grandes), pois cada guampa mede de 40 a 90 cm. Muito cultuada no Texas, essa raça, pela tradição e por ser um animal rústico, resiste bem às pragas, à seca, e a carne tem baixo teor de colesterol. Mas, em produtividade, perde feio para a nosso nelore.
Prevalece o lema “Don’t mess with Texas” (Não mexa com o Texas) e entenda-se esse sentimento não como presunção, gabolice, mas como um orgulho cívico, pois sempre foram corteses, eficientes e prestativos conosco nos serviços de atendimento. E, a bem da verdade, o Texas já foi um país independente, separando-se do México, em 1835, após uma sangrenta batalha contra o exército mexicano na cidade de Álamo, na qual os rebeldes, comandados pelo Gal. Houston (que empresta o nome à cidade homônima, no sul do Texas), vencendo a guerra em 1836, proclamaram a República do Texas, cujo território abrangia uma área muito maior. Vários presidentes chegaram a ser empossados e hoje podem ser vistos na galeria de fotos no Capitólio do Texas, na cidade de Austin, imponente edificação com altivez muito própria, pois é 1,5 m mais alta e tão admirável quanto o Capitólio de Washington.
A então novel república foi incorporada aos EUA em 1845, quando foi selado um acordo pelo qual foi anexado todo o território da denominada República do Texas, constituindo-se assim o 28º estado estadunidense. Do seu breve período de nação independente, a bandeira do Texas ainda conserva tão somente uma estrela, garbosamente denominada de bandeira da Estrela Solitária (Lone Star). Importante esclarecer que os EUA adotaram, naquela época, uma fortíssima política expansionista e, após a Guerra Mexicano-Americana (1846-1848), o país latino perdeu quase metade do território, inclusive a Califórnia.
Mas essa anexação foi extremamente conturbada e politizada entre os estados, pois o Texas era escravagista, com uma agropecuária robusta, em contraponto ao norte, essencialmente abolicionista, onde predominavam estados industrializados. Essas tensões em muito contribuíram para a eclosão da Guerra Civil Americana (1861-1865), com Abraham Lincoln exercendo a presidência do país, considerada a fase histórica mais sombria, de um conflito bélico fratricida, com mortes de cerca de 650 mil soldados e um número indefinido de civis.
É, ainda, um estado politicamente forte, pois quatro de seus homens públicos se tornaram presidentes na história mais recente do país: Eisenhower (que foi comandante em chefe dos aliados na 2ª Guerra e liderou as tropas no desembarque da Normandia), Lyndon Johson (sucedeu a John Kennedy, após o fatídico dia 22/11/63, ironicamente assassinado na cidade de Dallas) e, para completar o quarteto, o Bush pai e o Bush filho.
A imagem estereotipada do texano, com o seu inglês carregado, de botas e chapéu estilo caubói, estradas empoeiradas pelo trânsito do gado, velhas limusines com chifres de bovinos no capô, atualmente são conservadas apenas como tradição. A cidade de Fort Worth, a 53 km de Dallas, popularmente chamada de “Cowtown”, celebra com orgulho esse patrimônio, oferece um vislumbre do Velho Oeste e é onde ocorrem diariamente eventos de rodeio e desfiles do já mencionado gado longhorn.
Dois grandes eventos no Texas foram significativos para a migração de uma economia primária fundamentada na agropecuária, para um ecossistema propício ao desenvolvimento tecnológico e industrial: a descoberta de petróleo e a implantação do Centro Espacial da Nasa, em Houston, atualmente a maior cidade, com 2,3 milhões de habitantes. A Nasa, instalada a poucos minutos do centro de Houston, a partir de 1962, foi a mola propulsora para o desenvolvimento da indústria e engenharia espacial. É uma visita recomendadíssima e muito didática para conhecer uma das mais arriscadas aventuras da humanidade, que deixou como legado grandes avanços tecnológicos.
Muitas pessoas não sabem, mas Austin (capital do Texas), com quase um milhão de habitantes, difere muito das demais cidades, sendo famosa por sua energia jovem, pelo vibrante cenário musical e pelo seu reconhecimento como Capital Mundial da Música, refletindo seu espírito criativo e eclético. É uma das capitais estaduais que mais crescem nos EUA, o que se comprova pelo grande número de gruas. E foi para Austin que Elon Musk decidiu transferir a sede da Tesla e construir a maior fábrica, um investimento de 10 bilhões de dólares. A megaplanta, nominada Giga Texas ou Gigafactory, já em plena produção, atingiu em 2023 a marca de 5.000 carros produzidos por semana, além de ter fabricado mais de 50 milhões de células de bateria.
Em nosso giro em torno da fábrica, presenciamos 3 cybertrucks na pista de testes, recém-saídos da linha de produção. Com aparência futurista, é um dos mais arrojados designs para um automóvel, cuja versão mais cara custa, nos EUA, a bagatela de US$ 99.999,00 (aprox. 556 mil reais), enquanto o felizardo brasileiro que quiser esse brinquedinho na sua garagem terá de pagar, pelo mesmo modelo, cerca de 1,4 milhão de reais, devido aos impostos escorchantes sobre os automóveis.
A partir de 2012, ocorreu outro investimento de grande porte em Austin, perto de US$ 400 milhões, para edificação de um megacomplexo de esportes, lazer, restaurantes e eventos, denominado Circuit of the Americas, que abriga inclusive uma pista de Fórmula 1 (a edição de 2024 será realizada em 20 de outubro). No sábado que lá estivemos, presenciamos das arquibancadas uma corrida entre Porches e Ferraris.
Evidentemente, há restaurantes para todos os gostos e preços. Em Austin, um dos mais icônicos é o Terry Black’s Barbecue, que oferece uma variedade impressionante de carnes, acompanhamentos e molhos caseiros, tudo em abundância – para fazer jus à fama do Texas. Imperdível para quem for almoçar na cidade e a preços justos, porém há um problema: fila de espera. Quem saboreou um churrasco nesse restaurante foi o então Presidente Barack Obama ao visitar a cidade em 2016. Como tinha outros compromissos, furou a fila, mas pagou a conta de todos à sua frente. Foi aplaudido!
Por diversas cidades e vilas, percorremos cerca de 1.300 km do Texas em carro alugado. Observador atento, há alguns encantamentos que mereceram a atenção: atendimento cordial, sorriso fácil nos serviços de hotéis, restaurantes e lojas, estradas muito bem conservadas, pouquíssimos pedágios, uma abundância de elevados pré-moldados que dão fluidez ao trânsito e poucos, muito poucos congestionamentos. Não vimos pedintes ou moradores de rua. Raríssimos são os automóveis das marcas chinesas, como da GWM, BYD, pois o governo federal taxou em 100% a importação de carros provenientes da China, para proteger a economia contra as práticas comerciais consideradas desleais. Em contrapartida, há uma profusão de carros elétricos da Tesla, embora o predomínio absoluto ainda seja dos movidos à combustão. Um paralelo: o Brasil, que pertence aos Brics, é hoje o maior importador mundial de carros eletrificados chineses.
Foi uma viagem de muito aprendizado, para mim e para os meus dois filhos, e muito colaborou o bom sol e a temperatura amena. Mas o coração de um pai se enche de alegria quando na companhia de filhos maiores há um clima de colaboração, presteza, concessões e tolerância, pois nada mais certo em uma viagem que os imprevistos, ainda mais quando no total percorremos 3.200 km – no Texas e em mais quatro estados norte-americanos – em carro alugado, com um bom planejamento de roteiro, mas sem reserva alguma em hotéis ou restaurantes.
Jacir J. Venturi, que há muitos anos viaja pelo Brasil e pelo exterior com a família, sempre mediante um bom planejamento prévio de roteiro, em carro alugado, com intenso uso de aplicativos e sem reservas de hotéis (ou no máximo por apenas um dia em cada localidade), para se ater apenas o tempo necessário aos pontos turísticos mais interessantes e relevantes. O ritmo é forte, caminha-se muito, dorme-se pouco, os almoços são rápidos, em contrapartida os jantares, esses sim, são bem selecionados e preferencialmente típicos do país.