Liberdade de expressão: lembrança do passado recente

Daniel Medeiros*

Na manhã do dia 19 de agosto de 1968, tropas da polícia e do Exército invadiram a Universidade de Brasília, agredindo violentamente vários estudantes dentro das salas de aula. A justificativa era a perseguição a Honestino Guimarães, um estudante acusado de subversão, isto é, de panfletar e pichar mensagens contra o governo. Os militares reuniram centenas de universitários na praça central do campus e começaram a espancá-los. Um dos estudantes foi ferido com um tiro na cabeça.

Nos dias 2 e 3 de setembro, o jovem deputado do MDB, Márcio Moreira Alves, tomou as dores dos jovens agredidos e proferiu dois discursos na hora do pinga fogo da Câmara, (quando o plenário está praticamente vazio), para registro estenográfico do acontecimento. Entre outras coisas, disse:

(…) quando pararão as tropas de metralhar na rua o povo? (…) quando teremos, como pais, ao ver nossos filhos saírem para a escola, a certeza de que eles não voltarão em uma padiola, esbordoados ou metralhados? (…) quando não será a polícia um bando de facínoras? Quando não será o Exército um valhacouto de torturadores?

E no segundo discurso:

Vem aí o 7 de setembro. As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de patriotismo dos estudantes. Seria necessário que cada pai, cada mãe, se compenetrasse que a presença de seus filhos nesse desfile é um auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas. Portanto, que cada um boicotasse esse desfile. Esse boicote pode passar também – sempre falando de mulheres – às moças que dançam com os cadetes e namoram os jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje no Brasil com que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem entrada à porta de suas casas àqueles que vilipendiaram a Nação, recusassem aqueles que silenciam e, portanto, se cumpliciam. Discordar em silêncio pouco adianta.

Poucos dias depois, o ministro do Exército, Lyra Tavares, e também os ministros das outras armas, exigiram que o governo tomasse medidas legais contra o deputado que praticara  agressões verbais injustificáveis contra a Instituição Militar. Os militares da chamada “linha dura” começaram então a pressionar o presidente e a Câmara para que essa aprovasse uma licença para punir o deputado. A Aliança Renovadora Nacional, partido governista e com ampla maioria no Congresso, hesitou em jogar o deputado da oposição às feras. Se uma crítica dessa natureza, sem agressões pessoais e sem fugir aos fatos, resultasse em cassação, a ideia de imunidade parlamentar estaria perdida.

No dia 12 de dezembro, ocorreu a votação para saber se a Câmara daria ou não licença para cassar Márcio Moreira Alves. O clima era tenso e, sabia-se, tomava-se ali uma decisão crucial. O pedido de licença não foi aprovado. A Câmara dizia ao governo que um deputado se indignar com a violência contra os jovens e repudiar os agressores não era um insulto às instituições militares. Insulto era o comportamento daqueles que batiam indiscriminadamente, que atiravam, ferindo e matando inocentes.

Disse, a esse respeito, o próprio deputado: “Não esperei as comemorações da vitória. As últimas estrofes do Hino Nacional ecoavam ainda no plenário emocionado e eu encerrava o curto período em que minha vida coincidia com a vida política da minha pátria. Acompanhado pelo bravo deputado Martins Rodrigues e por alguns outros, saí da Câmara pelo corredor da biblioteca e entrei no carro de um amigo que me levaria para os caminhos da clandestinidade e, depois, para os do exílio.

Na manhã seguinte – uma agourenta sexta-feira 13 – o general-presidente Costa e Silva reuniu o Conselho de Segurança Nacional e apresentou-lhe o texto do Ato Institucional número 5, redigido pelo ministro da Justiça, Gama e Silva. O texto dava ao Executivo poderes para intervir no Legislativo quando e como quisesse, inclusive decretando o seu recesso, como de fato aconteceu. Também autorizava o presidente a intervir nos Estados e suspender, por sua vontade, os direitos dos cidadãos. O Judiciário perdia suas garantias. O presidente poderia “demitir, remover, aposentar, ou pôr em disponibilidade qualquer funcionário, inclusive juízes e militares. Poderia também decretar o estado de sítio a qualquer hora. E, por fim, os detidos em nome do Ato 5 não poderiam recorrer ao Judiciário, pois o habeas corpus fora suspenso.

Todos os membros do Conselho assinaram a medida sem qualquer oposição. Somente o vice-presidente, o advogado Pedro Aleixo, assinou com ressalvas. O Ato 5, disse ele, era ilegal. Foi uma voz solitária. Estava feito. O último prego na democracia brasileira estava batido.

No dia 14, o Jornal do Brasil anunciou, de maneira discreta, dissimulada, na seção metereológica, a temperatura “política” do país após a decretação da ditadura: Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos.

O Ato 5 perdurou por 10 anos. O regime militar, como um todo, 21 anos. A liberdade de expressão, como defesa da democracia e não como sua detratora, nunca como sua algoz,  jamais deve ser calada.

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros

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