História do samba no popular brasileiro – III

Sílvio Caldas(Foto)gravou “Cabelos Cor de Prata” do pernambucano-cearense Rogaciano Leite

A grande maioria dos pesquisadores concorda que a primeira vez em que a palavra “samba” apareceu em letra de forma, na imprensa brasileira, foi no jornal satírico O Carapuceiro, editado no Recife entre 1832 e 1842 por um religioso, o padre Lopes Gama. Em uma das edições do ano de 1838, o padre Gama faz referência ao “samba d’almocreves”, classificando o estilo musical como coisa própria da periferia, do meio rural (almocreve era o serviçal que cuidava de mulas e burros) contrapondo com o que se cultivava nos salões.

Texto e ilustrações: Zelito Magalhães

 A origem da palavra “samba”

Jorge Veiga, o Caricaturista do Samba, e o seu jeito malandro de cantar

Luis da Câmara Cascudo, Mário de Andrade, José Ramos Tinhorão, Oney da Alvarenga e outros pesquisadores semeiam teses sobre a origem da palavra “samba” que variam de “divindade angolana protetora de caçadores a culto à divindade.Foi lá, no Continente Negro, ondea força mágica dos rituais religiosos, o ritmo encantador de rústicos tambores, o canto forte e uníssono de homens e mulheres que entoavam canções e perdiam suas origens na ancestralidade do tempo, que começou a se formar, a ser formado. Como se vê, muitas dos nossos compositores buscaram nas origens africanas temas que bem interpretaram os costumes e as tradições daquele Continente. Temos como exemplo Chico Buarque, Gilbert Gil, a dupla Dodô & Osmar e outros. Gilberto Gil trouxe Canto das três raças:

Ninguém ouviu

Um soluço de dor

No canto  do Brasil

Um lamento triste

Do negro ecoou

Desde que o índio guerreiro

Foi pro cativeiro

E de lá cantou

Um canto de revolta pelos ares

Do Quilombo dos Palmares

Onde se refugiou (…)

Chico Buarque nos deu Morena de Angola: Morena de Angola/ Que leva o chocalho amarrado na canela/ Será que ela mexe o chocalho/ Ou chocalho é que mexe com ela? Por sua vez, Gilberto Gil aparece com: Filho de Gandhi badauê/ Ylêayiê malê de balêotu obá/ Filhos de Gandhi/ É povo grande/ O Ojuladêkatendê babá obá. A dupla Dodó&Osmar oferece: Um canto soou da massa/ Astral que nos elevou ô ô/ Alô, filhos de Gandhi/ Ora iê, irê ô/ Cantando ao som do agogô ô ô

 

O Samba-de-breque

“Terno de linho, chapéu panamá, o samba com sotaque da malandragem chegou às rádios levado pela ginga de seu embaixador, o cantor Moreira da Silva”. Foi com estas palavras que a crônica musical denominou tipo de música. Embora tenha sido o cantor Luís Barbosa, que nos anos 20 batucou o ritmo, deve-se a Moreira da Silva o mérito de ter codificado o gênero, de ter dado a ele os contornos definitivos e se transformado em seu maior e mais conhecido intérprete. Antônio Moreira da Silva sempre foi malandro, no bom sentido da palavra. Tão bom malandro que, mesmo com sucesso e cartaz na radiofonia, manteve o emprego público (era motorista de ambulância na Assistência Municipal) garantindo a aposentadoria. Moreira aos 19 anos, já era chofer de praça, cantando paralelamente em festas e serenatas, frequentando a praça Tiradentes, procurando uma chance. No ano de 1931 gravou as primeiras músicas: Ererê e Rei da Umbanda; porém, os maiores sucessos vieram com Arrasta a Sandália (1933) O Rei do Gatilho (quando surge o Kid Morengueira) na gravação de 1962.  Acertei no Milhar (1940) ganhou destaque nas paradas musicais:

Etelvina

Acertei no milhar

Ganhei quinhentos contos

Não vou mais trabalhar…

 

Viria a seguir o outro sucesso, que dizia:

Faustina, corre aqui depressa

Vem ver quem tá no portão

É minha sogra com as malas

Ela vem resolvida

A morar no porão…

 

No ano de 1936, mais precisamente em abril, no Cine Teatro Meier, no meio de um show, o cantor Moreira da Silva interpretou o samba Jogo Proibido, de Tancredo Silva: Não quero outra vida/ Navalha no bolso/ Chapéu de palhinha/ Ando melhor que jogador… Foi quando teve a ideia de introduzir frases faladas, para espanto do regional que o acompanhava.  Nascia ali a forma definitiva do samba-de-breque, segundo relatou o próprio Moreira: “Prolonguei os breques do Luís Barbosa, meti umas frases na linguagem pitoresca dos malandros, as palmas estouraram e a mina estava descoberta. Até hoje vivo dela”. A malandragem não gostou, pois na interpretação ele contava como era a trapaça do jogo-de-chapinha. E entre os músicos, ficou famosa a ocasião em que o violonista Frazão parou de tocar e, perguntado porque, respondeu ao Moreira: “Estou acostumado a acompanhar música. Conversa é a primeira vez”. Antônio Moreira da Silva, nascido no Rio de Janeiro em 1902, manteve o estilo em uma das carreiras mais longas da música brasileira. Foram ao todo mais de 120 gravações – de 1931 a 1995. Moreira faleceu aos 98 anos em 2000.

 

“Caboclinho Querido”

O termo foi criado pelo apresentador César Ladeira numa distinção ao cantor Sílvio Caldas. Filho da gaúcha Alcina Figueiredo Caldas e do afinador e vendedor de piano Antônio Narciso Caldas, o menino nasceuno Rio de Janeiro, em 23 de maio de 1908, bairro de São Cristóvão.  No ano de 1927, o rapaz fez sua estreia no rádio; dois anos mais tarde, compôs a primeira música:Mas… Por que Mulher? em  parceria com Quintas Freitas. Entretanto, o letrista que marcou a carreira do cantor foi Orestes Barbosa, com quem criou uma série de sucessos. Ainda em 1934, ano em que se conheceram, Silvio gravou pela Victor duas composições da dupla, as valsas Serenatae Santados Meus Olhos. Em 1937, mais alguns êxitos do cantor-compositor, novamente com Orestes Barbosa: Arranha-Céue a página antológicaChão de Estrelas:                                     

 

Minha vida era um palco iluminado

Eu vivia vestido de dourado

Palhaço das perdidas ilusões

Cheio dos guizos falsos da alegria

Andei cantando a minha fantasia

Entre as palmas febris dos corações

A porta do barraco era sem trinco

Mas a lua furando o nosso zinco

de estrelas o nosso chão…

Billy Blanco, autor do clássico Estatutos da Gafieira, gravado por Jorge Veiga

 

 

“Cabelos cor de prata”

O autor desta História do samba conheceu o poeta-jornalista Rogaciano Leite nos anos 60, no jornal “O Povo”, quando este se iniciava na profissão. Nas rodas de colegas, chegou a contar detalhes da  já conhecida valsa-canção que teve a sua chancela como autor da letra. Eram os anos 50 em Recife. Rogaciano chegando na Churrascaria Maxime’s, deparou-se com Sílvio Caldas, que não o conhecia. Durante o curso de conversa, entre tragos de uísque, o poeta pernambucano inspirou-se e rascunhou num papel de maço de cigarros um poema que entregou ao cantor. Na manhã do dia seguinte, Rogaciano telefonou para ele, pois queria ver o que tinha escrito para a possibilidade de fazer alguma correção. Foi interrompido: “Poeta, você não vai tirar nem botar uma só palavra no que escreveu. Assim, navoz de Silvio Caldas, com arranjo musical do maestro Radamés Gnattali, ainda hoje Cabelos Cor de Preta é cantado e aplaudido em todas as regiões do Brasil.

 

Meus cabelos cor de prata

São beijos de serenata

Que a lua mandou pra mimo

Os meus cabelos grisalhos

São pingos brancos de orvalho

De um tinteiro de nanquim

 

Declínio e morte do artista

O jornal Folha de São Paulo, edição do dia 4 de fevereiro de 1998, publicou a seguinte notícia: O cantor carioca Silvio Caldas morreu ontem, às 17h 30, em Atibaia, onde morava havia mais de quatro décadas. Ele tinha 89 anos e teria morrido de insuficiência pulmonar (a causa não foi divulgada até a conclusão desta edição). Ultimamente quase não falava mais, se comunicando principalmente por meio de sinais. Preferia fazer sinais de “positivo” e “mais ou menos”com a mão e permanecia o dia inteiro deitado. O sitio em que morava, que já foi a leilão várias vezes, está agora à venda por conta de uma dívida de R$ 295 mil junto à Caixa Econômica Federal, que o artista não tenha como pagar. Silvio Narciso de Figueiredo Caldas faleceu a 3 de fevereiro de 1998.

 

Caricaturista do Samba

“Alô, alô, senhores aviadores que cruzam os céus do Brasil. Aqui fala Jorge Veiga, da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Estações do interior de todo o país, queira dar seus prefixos, para orientação de nossas aeronaves”.

Na década de 50, ficou famosa a maneira com que Jorge Veiga abria suas apresentações em qualquer microfone do Brasil. Como muitos artistas, ele era um aficionado pela aeronáutica, disputando com o humorista José Vasconcelos qual dos dois era “mais piloto”. Naqueles tempos pioneiros da aviação, o pedido do cantor foi, muitas vezes, de extrema valia para aviões que haviam perdido o rumo, e ele acabou condecorado por serviços prestados. Chegou a compor em parceria com Zé Violão o samba Aviadores do Brasil.

 

Como tudo começou

Jorge de Oliveira Veiga nasceu no Rio de Janeiro-RJ em 14 de abril de 1910. Foi engraxate, vendedor de frutas e biscates. Certo dia, quando Jorge executava serviços de pintor de paredes num armazém, o dono ao ouvi-lo cantar enquanto pintava, levou-o para a Rádio Metrópolis, através de um amigo. Estreando em 1934, cantavano estilo de Silvio Caldas, considerado um dos intérpretes de maior prestígio da época. Mas por influência de Heitor Catumbi e Rogério Guimarães,resolveu mudar de estilo e adotar o samba malandro, que se casava perfeitamente com sua voz e maneira de interpretar

Em 1939, veio a sua primeira gravação: Adeus, João, interpretada ao lado do acordeonista Antenógenes Silva, titular do disco.   Conheceu em 1942 Paulo Gracindo na Rádio Tupi, apresentando-se no Programa Paulo Gracindo um dos líderes de audiência na radiofonia brasileira. Seguindo o modismo da época, o apresentador cria o slogan – Jorge Veiga, o Caricaturista do Samba, que vai acompanhar o sambista pelo resto de sua vida. “Paulo Gracindo me ensinou a cantar sempre sorrindo, para dar mais leveza à interpretação e divertir mais os ouvintes” – disse o cantor anos mais tarde.

O jeito malandro de cantar samba, caindo para o estilo de breque, acabou por gerar com Moreira da Silva séria rivalidade que o Brasil inteiro comentou. Gravando grandes compositores como Wilson Batista, Antônio Almeida, João de Barros, Haroldo Lobo, Milton de Oliveira e tantos outros, Jorge Veiga teve seus momentos de glória quando foi convidado a para gravar os clássicos Estatutos da Gafieira,de Billy Blanco (1954)e Café Soçaite, de Miguel Gustavo (1955) o compositor favorito de Moreira da Silva.

Estatutos da Gafieira:                                                                                                                               

Moço, olha o vexame

O ambiente exige respeito

Pelos Estatutosda nossa gafieira

Dance a noite inteira

Mas dance direito.

 

Café Soçaite

Doutor de anedota e de champanhota

Estou acontecendo no Café Soçaite

Só digo enchanté, muito merciallright

Troquei a luz do dia pela luz da light

 

Acertei no milhar, de Wilson Batista e Geraldo Pereira, gravação de 1959, virou um marco de sua brilhante carreira.

“A voz característica de sambista suburbano tornou clássicas composições que até hoje não encontram melhor intérprete. O samba de Jorge Veiga tem personalidade e estilo admiráveis”             A rivalidade gerada por Moreira da Silva contra seu adversário foi sem limite. Querendo vingar-se do seu rival de maneira mais contundente, chegou a dizer: “Jorge Veiga veio na minha sombra. O samba de breque foi criado por mim. Sem pretensões, aliás, porque isto foi uma dádiva do céu. E mais: o Jorge Veiga está no rádio porque tem amigos e sabe puxar. Foi para o microfone pelos braços de Manoel Barcelos e do Paulo Gracindo” (Extraído do livro Moreira da Silva, o Últimodos Malandros, de Alexandre Augusto – Sonora Editora – 1ª edição 1996 – SP)

No ano de 1956, lança o LP Boate Tralalá,Bigorrilho, de Paquito, Sebastião Gomes e RomeuGentil.

Uma característica não-comum do cantor foi sua luta de vida inteira, tentando mudar o nome da rua Honório, onde morava, para rua Jorge Veiga. “Afinal, quem foi Honório? Jorge Veiga todos conhecem…” – foi seu maior e inútil argumento. Bastante elogiado pela crônica do hipismo foi o samba Barbada, lançado no ano de1954:

 

Todo fim de mês o Edgar faz isso:

Se mete na corrida e lá se vai o aluguel

Quando ele chega, vem encabulado

Sorri e diz: neguinha, estou arruinado

Recebi o pagamento e fui até ao prado…

Chegando lá, fiz o programa e fiz acumulada

A Glória disse que era uma barbada

E que o cavalo Zoom-Zoom-Zoom

Não podia perder

A saída foi boa com o corpo na frente

Foi bem aplaudido por toda gente

Mas a chegada é que foi de amargar:

Fui ver, o meu cavalo

Estava em último lugar

 

Ao longo de 40 anos de artista (1939 a 1979, o Caricaturista do Samba gravou mais de 200 músicas que ainda hoje são lembradas pelos brasileiros. Faleceu no dia 29 de junho de 1979.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

0 Compart.
Twittar
Compartilhar
Compartilhar