Brasil reduziria fila no SUS para atendimento de saúde ocular
Forte lobby dos médicos oftalmologistas impede atuação dos optometristas, que poderiam atender pessoas que, majoritariamente, aguardam uma avaliação do sistema ocular e uma receita de um par de óculos ou lentes.
Mais de 80% das pessoas que aguardam consulta pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para alguma enfermidade ocular possuem problemas refrativos, como miopia e astigmatismo, que são as principais causas de cegueira evitável, casos em que é possível corrigir com o uso de óculos ou lentes de contato. Todo esse contingente poderia ser facilmente atendido por optometristas, segundo o Conselho Brasileiro de Óptica e Optometria (CBOO), uma vez que se trata da maior parte da demanda por atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, a pressão dos médicos oftalmologistas, que buscam uma reserva de mercado, impede a atuação dos optometristas, contribuindo para o crescimento vertiginoso de pessoas com problemas de visão graves no Brasil.
A falta de atendimento imediato, além de acarretar severas perdas na qualidade de vida, pode agravar os problemas oculares. Só no Distrito Federal, de acordo com dados da Secretaria de Saúde, até setembro de 2019, a fila de espera para consultas relacionadas à saúde ocular chegava a seis anos. Crianças com idade de zero a 15 anos representam 70% desses pacientes. Em mais de 5 mil casos, crianças e adolescentes esperam por uma simples avaliação da visão.
Segundo a presidente do CBOO, optometrista Eriolanda Bretas, em todos os países desenvolvidos o optometrista é uma profissão regulamentada e faz o atendimento da demanda primária de saúde ocular dos cidadãos. Conforme a presidente da entidade, que representa 5 mil optometristas que possuem formação em nível superior, esse profissional tem capacitação para avaliar a condição de todo o sistema ocular, aferindo sua integridade e sinais de deficiência visual que possam ser corrigidas com a receita de óculos ou lentes. Os optometristas também estão aptos a identificar doenças que necessitem da intervenção médica, quando o paciente é encaminhamento ao corpo clínico.
“Essa fila do SUS é, na verdade, uma fábrica de cegos. Esse tempo desumano de espera acarreta prejuízos irreversíveis à visão, incapacitando as pessoas para determinadas atividades ou instalando a escuridão eterna em suas vidas, havendo ainda casos de risco de morte. Tudo isso poderia ser evitado ou, ao menos, amenizado com o atendimento multidisciplinar, incluindo os optometristas. A OMS aponta o optometrista como o agente primário da visão justamente por ele estar capacitado para avaliar o sistema visual, a integridade de tecidos, a fisiologia, medir, reabilitar o potencial prejuízo, fazendo com que os casos graves possam chegar mais precocemente, ou a tempo, de cuidados médicos. Essa prática potencializaria significativamente as chances de cura, reduzindo os prejuízos e o sofrimento dos pacientes. No entanto, essas pessoas, entre os quais milhares de crianças, estão aos poucos perdendo a visão”, destaca a presidente do CBOO, optometrista Eriolanda Bretas.
A falta de informação e o forte lobby dos médicos oftalmologistas, que não dão conta da demanda, segundo o CBOO, são os grandes responsáveis por essas pessoas não serem atendidas. Ações que tramitam em várias instâncias da Justiça impedem os optometristas de trabalhar. Os argumentos têm como base decretos que remontam a 1932, quando ocorreu a primeira regulamentação da medicina no Brasil. A época, os antigos “práticos” optometristas, que não possuíam formação, foram proibidos de atuar.
Há doze anos, tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Arguição de Descumprimentos de Preceito Fundamental (ADPF 131) protocolada pelo CBOO, que busca ver definitivamente reconhecido que os mencionados Decretos da década de 30 devem proibir apenas os profissionais “práticos”, que já não existem mais no mercado.
“Aplicar normas de um tempo em que sequer havia televisão, para em pleno século XXI regular ciência e tecnologia, ofende não só o bom senso. Proibir um profissional reconhecido em todo o mundo e aqui formado por instituições de ensino devidamente autorizadas, fere de morte, também, nossa Constituição, especialmente no que toca à liberdade de ofício ou profissão, prevista no art. 5º, inciso XIII”, pontua o advogado Fábio Luiz da Cunha, Procurador Jurídico do CBOO.
Atualmente, existem 5 mil optometristas registrados no Brasil com formação de nível superior. Ainda de acordo com o CBOO, uma das estratégias utilizadas pelas entidades médicas é relacionar a profissão de optometrista com o técnico em óptica, como forma a desinformar, gerar medo e insergurança nas pessoas e influenciar os gestores públicos.
“Existe uma confusão que se faz entre esses dois profissionais. O técnico em óptica é o profissional que possui curso de nível médio de dois anos. Toda a óptica precisa ter um técnico em óptica como um responsável técnico. Esse profissional é responsável e habilitado a receber as receitas, tanto do optometrista quanto de oftalmologistas, ler aquela receita e transferir seus dados para a máquina que vai fabricar a lente, os óculos, fazendo a adaptação necessária para o rosto da pessoa. Os técnicos em óptica não realizam qualquer tipo de exame e optometristas não fabricam óculos”, destaca Eriolanda.
Disputa jurídica
A luta dos optometristas para poder atuar no Brasil é antiga. No começo dos anos 2000, o primeiro curso superior em optometria foi lançado pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), em Canoas, Região Metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Entre 2004 e 2005, quando da formatura da primeira turma de optometristas, o Conselho Federal de Medicina ingressou com Mandado de Segurança contra o Ministro da Educação, com base nos Decretos de 1932 e 1934, alegando que os diplomas eram ilegais, pois permitiriam que “não médicos” exercessem a medicina. O objetivo era o de impedir a homologação dos diplomas.
Como a medida se deu contra um Ministro de Estado, com foro privilegiado, a ação foi diretamente para o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em 2005, por mais de uma vez, o STJ, negou o pedido do CFM, entendendo regular a formação dos optometristas. Em março de 2007, foi a vez do Supremo Tribunal Federal (STF) que, julgando o recurso da medicina (Recurso Ordinário de Mandado de Segurança – RMS 26.199), reiterou a legalidade do ensino da optometria em nível superior.
“Agora veja, as cortes superiores do nosso país reconheceram a validade dos cursos de Optometria. A União Federal, inclusive, através de programas de financiamento como FIES, incentiva a formação desse profissional. O Congresso Nacional reconhece que a prescrição de óculos não é ato exclusivo de médico. OMS e o próprio Conselho Internacional de Oftalmologia reconhecem que o optometrista é essencial na atenção primária em saúde visual. Imaginar que esse profissional pode ser extinto do Brasil, seria institucionalizar o negacionismo”, ressalta o procurador do CBOO, advogado Fábio Cunha.