A dupla jornada da velhice
Daniel Medeiros*
A idade tem o condão de duplicar nossa percepção do mundo: agora, olhamos para frente e para trás, como um Janus ambulante, tropeçando ora nos afazeres, ora nas lembranças, acertando as pendências das contas diárias e retocando as memórias de décadas, repetindo-as até que se ajustem ao tom desejado. A vida se torna mais intensa, embora mais lenta, já que para pensar é preciso cessar as atividades do corpo.
A vida do espírito é diferente da vida de ação, como já lembrava Hannah Arendt. Quem vê de fora, pensa que estamos ficando alheios ao mundo e diz “tadinhos”. No entanto, estamos, na verdade, catalogando a nossa lembrança do mundo e, muitas vezes, prestando contas de nossos desacertos. Afinal, quanto tempo teremos a mais para isso? Certo é que todos queremos viver muito, quando na verdade queremos dizer que queremos viver de maneira relevante, para que, ao fim, possamos dizer que valeu a pena.
Para isso, de quando em quando, há a necessidade de uma auditoria dos fatos vividos e das suas inevitáveis consequências. As amizades que se foram, os amores, os lugares, os projetos, as ambições, onde será que habitam agora? Qual versão de nós mesmos somos neste momento? Uma razoável ou aquela que se acovardou de tudo e se estranhou com todos? Todo dia é um dia para trocar o roteirista ou para dar uma bronca no diretor da história da nossa vida. O duro é que, com isso, o ator principal também desaparece do set.
A idade faz com que reparemos nos detalhes das coisas, mesmo com a vista mais fraca. Mas é porque prestamos mais atenção. E isso porque, como já dito, tornamo-nos mais letárgicos. A vida de verdade não dá pra ser ouvida na velocidade 2X. Assim, escapam todas as sutilezas, os pequenos gestos nervosos ou de abandono, de ansiedade ou de desejo.
Temo pela memória dos mais jovens e mesmo de muitos adultos, que aceleram seu tempo como se houvesse mesmo um prêmio para quem chegar primeiro ao fim disso tudo. Temo que se tornem como Funes, o memorioso, personagem do escritor Jorge Luís Borges, que tudo apreende mas com nada aprende. Não à toa morreu sufocado, de congestão pulmonar, incapaz de respirar, que é ato de interrupção antes de ser ação. Sufocado porque, sem o filtro da memória, que tem a função de esquecer para destacar, como um jogo de imagem e fundo, tudo se mistura e tudo invade tudo, criando um borrão indefinível. Milan Kundera, no seu romance A Lentidão, já alertava para a necessária relação entre velocidade e esquecimento. Ser o primeiro em tudo, antes de todos, é só mais uma forma de estar só.
O dia a dia clama por decisões rápidas e explicações sucintas. Quem suporta uma reunião de duas horas? Quem aguenta uma aula monótona, como uma gelatina derretida ao sol? Mas o crucial só se aprende pela persistência da memória, e a persistência é uma forma delicada de exercício, complexa e exigente. Quando alcançamos esse nível de reinserção em nossos passos já dados, descobrimos que somos os autores capazes de mudar os ângulos de como vemos o nosso passado, mas o passado, como tal, não pode ser de todo apagado: vive como lembrança companheira ou fantasma inquieto. Está sempre lá.
Creio que, diante disso tudo, envelhecer é assumir essa dupla jornada, de sonhos e sombras, de planos de futuro e papéis largados no fundo da gaveta, de artigos escritos em cima da hora e romances abandonados para sempre, de abraços carinhosos durante o café da manhã de domingo e a persistência do cheiro do perfume no lóbulo da orelha da primeira namorada, enquanto a música triste embalava a vida que parecia, então, não ter hora pra acabar.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros