Os contornos mais graves do caso de trabalhadores tratados como escravos em Bento Gonçalves
Por Percival Maricato, advogado, sócio de Maricato Advogados.
Quem permite trabalho análogo à situação de escravidão, como os fatos em apuração em vinícolas de Bento Gonçalves, terceirizado ou não, além de incompetente, de fazer concorrência desleal, o faz com culpa ou dolo e deve ser punido. No caso de culpa, modalidade negligência, as penalidades podem ser administrativas (perda de patrimônio, terras, licença de funcionamento), trabalhistas (soma de todos os direitos sonegados) e civis (indenizações, por exemplo, por morte, hospitalizações, afronta moral, não abrangidas no Direito do Trabalho). Quando há dolo, deve incidir também a lei penal, que pode chegar à prisão. A punição maior em casos de repercussão é econômica, o dano à imagem e essa será aplicada pela população.
Para evitar que essa abjeção aconteça, basta a quem contrata estipular e fiscalizar a forma de trabalhar, horários, descansos, segurança, pagamentos, conforme previstos em lei. Admite-se uma ou outra falha, mas trabalho escravo não tem nada a ver com descumprimento de detalhes, é muito mais brutal, uma ignomínia como no caso descoberto em terras gaúchas.
Quando o trabalho é contratado por terceirização, corretamente, ele ajuda na produção e ressalva direitos dos trabalhadores. Mais que fiscalizar, a contratante tem que conhecer quem está contratando, analisar sobre sua idoneidade, sua capacidade econômica, pois há muitos detalhes difíceis de controlar na prestação de serviços e deve evitar administrar os serviços dos trabalhadores, obrigação da contratada.
Regularmente, o contratante deve exigir prova de que o contratado está cumprindo suas obrigações com os trabalhadores, até porque, se estes não forem devidamente pagos, ele terá que arcar novamente com os pagamentos devidos, com indenizações integrais e elevadas se houver um acidente de trabalho. Tendo em vista a evolução social e legal, é bom que a contratante se preocupe com outros detalhes, como por exemplo o de fiscalizar até como são tratados os trabalhadores fora do horário de trabalho, visitando dependências onde residem e descansam, nos casos que exijam deslocamentos dos mesmos para fora de seus locais de residência.
No caso de Bento Gonçalves, não há como as vinícolas contratantes dizerem que desconheciam as condições de trabalho se os trabalhadores se ativavam mais de oito horas por dia em suas dependências e não tinham descansos regulamentares, não recebiam por hora extra etc.
Infelizmente, neste caso em Bento Gonçalves, há outros aspectos que dão contornos mais graves aos fatos relacionados a discriminação contra nordestinos combinado com viés de apologias a linhas de pensamento de ultradireita. Sentimos isso no pronunciamento da entidade comercial local e de integrante do poder legislativo de Caxias do Sul.
Achavam que deveriam mesmo explorar os “baianos” o quanto esses aguentassem. Cidadãos que deixaram suas famílias, amigos, locais onde nasceram e atravessaram meio país por empregos. Ao invés de respeito, foram, como os fatos relatados demonstram, profunda e absurdamente desrespeitados.
A ideologia de ultradireita está contida na declaração da associação, que, em vez de se desculpar, preferiu, em nota, culpar os programas assistencialistas dos governos. Nota inclusive contraditória, pois nem tem sentido argumentar que no Rio Grande do Sul não havia trabalhadores disponíveis devido aos auxílios governamentais e na Bahia existiam, por isso foram buscá-los nesse estado. Pressupõe que o auxílio não existe na Bahia e que se os trabalhadores locais ganham a fabulosa ajuda de R$ 600,00 reais para sustentar sua família, não vão passar fome e então não vão querer trabalhar.
Trata-se, infelizmente, de ideologia que envolve muita gente. A exploração dos trabalhadores, as manifestações da associação e do vereador são apenas a ponta do iceberg. Lembremos que recentemente uma câmara de vereadores de Santa Catarina cassou uma vereadora que denunciou uma manifestação na cidade onde os presentes fizeram a saudação nazista, filmada, notória, absolutamente inconfundível.
Felizmente, para o país, nem todas as vinícolas foram envolvidas e, portanto, a acusação não deve ser generalizada. Mesmo as atingidas são empresas que, após as devidas punições administrativas, trabalhistas, financeiras e penais se for o caso, precisam ser preservadas.
Nunca nos esqueçamos da aniquilação de dezenas de empresas brasileiras envolvidas nos viciados e politizados processos da Lava Jato. Foram milhares de empregos perdidos, de tributos, de produção de obras. As empresas, que já ocupavam amplos espaços nos mercados africanos, latino-americanos e asiáticos de obras de engenharia, que acumulavam invejável tecnologia e renome, deixaram-nos para empresas do chamado “primeiro mundo”, EUA principalmente, que tanto apoiou o grupo que se organizou para transformar o Judiciário em extensão de partido político. A liquidação dessas empresas fez com que voltássemos à insignificância em grandes obras de engenharia, limitados a exportar commodities.
Agora, cabe às empresas gaúchas envolvidas desculparem-se perante a sociedade, cumprirem as punições, trocarem os gestores e voltarem a tentar reocupar os mercados. Foi o que aconteceu com a Gregory, Zara, Makro, todas vítimas de terceirizações malfeitas. Não vai ser fácil, pois a concorrência no mundo do vinho é intensa.
É preciso que os empresários brasileiros reconheçam o custo civilização, que tanto como o custo Brasil, deve ser contabilizado na produção. É justo até para que não haja concorrência desleal. Mas, principalmente, temos um processo civilizatório que vem sendo construído ao longo de milhares de anos e devemos preservá-lo, combater a exploração e a truculência, cumprir normas legais, normas de convivência, de respeito aos direitos humanos, seja o cidadão gaúcho, baiano ou venha de onde vier.