Ciência investiga a genética do novo coronavírus e origem de transmissão da covid-19
Desde que foram relatados os primeiros casos de humanos com covid-19, na cidade de Wuhan, província de Hubei, na China, em dezembro de 2019, pesquisadores e órgãos internacionais de saúde investigam a origem da transmissão da doença. Logo que surgiram os primeiros casos, a suspeita divulgada foi de que a contaminação estaria associada à venda de animais silvestres para o consumo humano no mercado chinês de frutos do mar da cidade chinesa.
No entanto, segundo o médico-veterinário Ricardo Dias, professor do Laboratório de Epidemiologia e Bioestatística, da Faculdade de Medicina de Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP), os primeiros casos de covid-19 não foram de pessoas com histórico de contato no mercado de Wuhan. “Uma teoria alternativa, proposta pela comunidade científica, é a de que tenha havido a transmissão zoonótica em outro local. Quando alguns infectados foram ao mercado, aí, sim, teriam transmitido para mais pessoas, espalhando a doença pela cidade”, explica.
Segundo a Organização Mundial de Saúde Animal (OIE, sigla em inglês), até o momento, a fonte ou a rota original de transmissão ao ser humano não é conhecida com exatidão. As pesquisas, entretanto, sugerem que, de acordo com os dados da sequência genética do novo coronavírus (SARS-CoV-2), ele poderia ter emergido de uma fonte animal e seria um parente próximo de outros coronavírus encontrados em populações do morcego-ferradura (Rhinolophus affinis).
Numa série de sete vídeos disponíveis no YouTube, Dias, que é doutor em Epidemiologia Experimental Aplicada às Zoonoses, fala sobre o genoma dos diferentes coronavírus existentes e como está sendo para a ciência o enfretamento desse novo tipo. Assista.
– Origem
De acordo com nota produzida pelos integrantes da Comissão Nacional de Animais Selvagens, do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CNAS/CFMV), os estudos genéticos revelaram que os morcegos hospedam um tipo de vírus muito semelhante ao SARS CoV-2, que possivelmente infectou uma outra espécie animal, dando origem a uma recombinação genética que resultou no vírus responsável pela pandemia. No entanto, a comissão destaca que a identidade de qualquer hospedeiro intermediário que possa ter facilitado a transmissão para humanos ainda não foi comprovada, assim como a sua forma de transmissão.
Para a CNAS, a transmissão animal-humano da covid-19 ainda precisa ser mais bem estudada. “Mas o pangolim (Manis sp.) vem sendo apontado como um possível hospedeiro intermediário do vírus, porém, ainda sem consenso entre os pesquisadores”, pondera a nota da comissão.
A médica-veterinária Hilari Hidasi, presidente da Associação Brasileira de Veterinários de Animais Selvagens (Abravas), reforça que ainda está sob investigação o surgimento desse novo coronavírus. Ela esclarece que as “pesquisas mostraram que o coronavírus encontrado em morcego tem 96% de similaridade com o SARS-CoV-2, porém, a proteína S, que constitui o receptor pelo qual o SARS-CoV-2 se liga nas células do homem, é diferente nesse vírus encontrado no morcego”. Ela acrescenta: “É importante dizer que essa espécie de morcego (R. affinis), na qual se detectou o vírus, é endêmica da China e estava em período de hibernação na época de aparecimento”.
Sobre a origem da transmissão, Hidasi concorda com a CNAS e diz que a suspeita é de que o coronavírus do morcego teria sido transmitido primeiro ao pangolim (Manis javanica), pois o R. affinis não estaria presente no mercado chinês durante a investigação. Já o pangolim teria sido encontrado no local, fruto de importação ilegal, e nessa espécie teriam identificado um coronavírus com a proteína S similar ao do SARS-CoV-2.
“Porém, o SARS-CoV-2 ainda tem um sítio de clivagem polibásico, não presente nos coronavírus encontrados no morcego e pangolim. Ou seja, a teoria mais aceita pelos cientistas é de que ocorreu nesses animais uma seleção natural para adquirir esse sítio antes da transmissão ao homem. Isso seria possível, pois há muitos tipos de coronavírus existentes em populações de animais de vida livre”, explica Hidasi.
Na visão do professor Dias, evidências apontam para o pangolim, entretanto há outros animais que poderiam ter sido hospedeiros intermediários, incluindo animais domésticos e silvestres. “Vários deles sabidamente se infectam e poderiam ter transmitido o SARS-CoV-2 a humanos”, afirma.
O fato é que, em 2012, quando ocorreu o surto de Síndrome Respiratória no Oriente Médio, causado pelo coronavírus MERS-CoV (Middle East respiratory syndrome-related coronavirus), a transmissão se deu de morcegos a camelídeos e, depois, para humanos. Dez anos antes, a Síndrome Respiratória Aguda Grave na China, causada pelo SARS-CoV-1, também tinha o morcego como reservatório, que a transmitiu a civetas (animais consumidos como fonte de proteínas) e das delas para os humanos.
“Dentre os 38 coronavírus conhecidos, 22 foram descobertos na China. Os coronavírus que têm capacidade de se ligar ao receptor ACE2 no homem [proteína presente no corpo humano, especialmente no pulmão, que atua como receptor do coronavírus] são os mais estudados, por causa do seu potencial zoonótico, e eles foram todos isolados em morcegos do gênero Rhinolophus sp., que têm distribuição cosmopolita [pode ser encontrado praticamente em qualquer lugar do mundo]”, afirma Hidasi.
A médica-veterinária explica que o sistema imune dessa espécie de morcego é diferenciado, por conta da sua adaptação para o voo, o que a torna ainda mais suscetível a diferentes vírus, quando comparada a outros mamíferos. Ao mesmo tempo, essa mesma capacidade de voo e migração favorece a disseminação do vírus.
Dias acrescenta que os morcegos são tão suscetíveis aos vírus quanto outros mamíferos. “Porém seu sistema imune é mais complacente, lidando de forma diferente com infecções virais e a resposta inflamatória”, diz o professor da USP.
“O histórico das epidemias por coronavírus, a ocorrência dos morcegos e a proximidade e relação entre possíveis hospedeiros, como animais sendo consumidos como alimento, e grande densidade populacional, facilitam a mutação viral e sua dispersão, seja por contato direto ou por fômites contaminados [qualquer objeto inanimado ou substância capaz de absorver, reter e transportar organismos contagiantes ou infecciosos de um indivíduo a outro]”, conclui a presidente da Abravas.
Para evitar tragédias anunciadas como a que estamos passando e mitigar futuras pandemias, o caminho seria proibir a venda de animais silvestres para o consumo humano como alimento? Para a CNAS, a falta de controle sanitário na produção dos alimentos de origem animal é o maior dos problemas, já que a manipulação correta, a cocção ou o congelamento de carnes exóticas pode eliminar ou inativar patógenos.
“Acreditamos que a promoção de campanhas de educação em saúde direcionada à produção e ao consumo de alimentos de origem animal seja uma boa conduta. Aliada, é claro, ao cumprimento da legislação, com a aquisição de animais silvestres procedentes de locais devidamente registrados e com controle sanitário adequado”, afirma a comissão.
Assim também pensa a presidente da Abravas. Ela explica que as condições insalubres às quais os animais são submetidos em mercados sem regulamentação, com diversas espécies (cães, galinhas, cobras, porcos, civetas) dividindo o mesmo espaço físico, em gaiolas pequenas, péssimas condições de higiene, com dieta deficiente, manipulados e abatidos em local sem controle higiênico-sanitário, acabam gerando estresse prolongado nos animais, o que leva à imunossupressão, predispondo-os ao contágio e transmissão viral e, consequentemente, aumentando a possibilidade do aparecimento de zoonoses e antropozoonoses.
“A criação em cativeiro, se realizada de acordo com as normas sanitárias e de bem-estar e supervisionada por um médico-veterinário capacitado, reduz ao mínimo a possibilidade de contágio”, afirma Hidasi.
Como medidas preventivas contra novas pandemias, o Dias defende o combate ao tráfico de animais selvagens, o aumento da seguridade alimentar, ou seja, o acesso à alimentação adequada e segura, e a melhoria do saneamento básico da população.
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, sigla em inglês), especificamente em seus escritórios na Europa e Ásia, tem feito alertas diversos, desde o início da pandemia de covid-19, tem divulgado ativamente as práticas de higiene, inclusive com relação ao consumo de carne de animais selvagens.
“As pessoas não devem manipular, preparar, sacrificar, vender, ou consumir carne que se origina de animais selvagens, de gado doente ou que tenha morrido de causas desconhecidas” destaca a FAO. Ainda acrescenta que a carne crua de animais selvagens ou pratos crus, à base de sangue de animais selvagens, não devem ser consumidos. “Essas práticas expõem as pessoas a alto risco de infecções”, informa a entidade, que recomenda a adoção das boas práticas de higiene habitual, como lavar as mãos antes e depois de manipular ou alimentar o gado ou os pets, incluindo o manejo de carne de animais silvestres.
Para contribuir com a prevenção e o controle da propagação de coronavírus, a FAO ressalta que todas as ações devem ser coordenadas com o enfoque da Saúde Única, vinculadas a especialistas em saúde animal, humana e ambiental, como o médico-veterinário. A entidade reitera a necessidade de comunicação imediata ao serviço veterinário oficial e às autoridades de sanidade animal a respeito de qualquer morbidade ou mortalidade incomum dos animais.
Alinhada às autoridades sanitárias internacionais, a FAO reforça que, até o momento, não há evidências significativas da transmissão do novo coronavírus de animais para humanos, portanto, não há justificativa para tomar medidas que comprometam o bem-estar dos animais.
Desde a primeira manifestação global do novo coronavírus, a FAO colabora estrategicamente com a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a OIE para ajudar os países-membros a identificar animais que possam hospedar esse vírus e reduzir os eventos de contágio humano.
“Se você está realizando pesquisas para determinar a epidemiologia da covid-19 e a participação de animais como reservatório de vírus ou hospedeiros intermediários, comunique a organização”, solicita a FAO, que supervisiona e compara informações detalhadas sobre a situação dos doentes em todo o mundo, além de coordenar atividades de prevenção, preparação e detecção de animais.
A CNAS acrescenta que é prematuro falar da transmissão da covid-19 entre animais e apontar quais espécies podem ou não se infectar com o novo coronavírus. O que já se sabe sobre as coronaviroses, catalogadas e estudadas antes mesmo dessa pandemia e que nada têm a ver com o SARS-CoV-2, é que são mais comuns em mamíferos e aves, segundo a presidente da Abravas. “Podem acometer grupos animais específicos, como cetáceos, quirópteros, felinos, caninos, humanos, ouriços, ungulados, podendo ocorrer transmissão entre espécies, porém, o fato de haver transmissão não, necessariamente, significa manifestação de doença”, diz Hidasi.
De qualquer forma, para toda doença, a CNAS recomenda seguir o protocolo de prevenção instituído, desde que se conheça o perfil epidemiológico da população, o patógeno e como ele causa alterações na saúde de animais e humanos. “Para alguns coronavírus das espécies domésticas já existem até vacinas para os animais, as quais fazem parte de protocolos preventivos”.
“A transmissão não necessariamente significa manifestação de doença”, complementa a presidente da Abravas. De qualquer forma, como velejamos em mares nunca dantes navegados, a presidente da Abravas recomenda as medidas sanitárias adequadas para a prevenção de doenças de uma forma geral: lavar as mãos regularmente, fornecer manejo adequado ao animal (temperatura, ventilação, iluminação, nutrição, recinto etc.), manter o ambiente que o animal frequenta sempre limpo e evitar contato direto do animal com pessoas imunocomprometidas. “O tratamento dos animais infectados deverá ser realizado de acordo com a espécie acometida e os sinais clínicos apresentados, sendo o médico-veterinário especializado nessas espécies o responsável por conduzir o caso”, alerta.
Esse tem sido o protocolo no caso da tigresa do zoológico do Bronx, em Nova York, nos Estados Unidos, que testou positivo para o novo coronavírus. Hidasi está em contato com os médicos-veterinários da instituição e relata que a tigresa e os outros felídeos acometidos (cinco tigres e três leões) receberam tratamento paliativo, conforme as necessidades. “Até o momento, foi relatado que os animais estão evoluindo bem, clinicamente, e todos os funcionários estão utilizando Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) nos cuidados de todos os felídeos selvagens da instituição”, diz.
A médica-veterinária da Abravas explica que os felídeos apresentam um receptor homólogo ao ACE2 nos pulmões, assim como os humanos, implicando predisposição a desenvolver a doença se expostos ao vírus, mas nada que comprove que, uma vez doentes, são capazes de transmitir esse vírus ao homem.
Quais são os cuidados para quem cria jiboias, iguanas, papagaios, jabutis, entre outras espécies selvagens, como animais de estimação, seja em uma casa ou apartamento?
No Brasil, a criação legalizada de animais silvestres é prevista em lei. A importância de ter um animal com origem conhecida desde o nascimento garante a sanidade dele e de seus cuidadores. “O risco sanitário ocorre quando a origem do animal é desconhecida, quando não há assistência médico-veterinário periódica, nem ambiente e nutrição adequados, de acordo com as características biológicas da espécie”, alerta a CNAS.
A presidente da Abravas revela que os proprietários que adquirem animais silvestres comercializados legalmente recebem, em sua maioria, orientação adequada sobre o manejo dos animais e acompanhamento médico-veterinário.
“De forma geral, havendo conscientização dos tutores sobre a importância de adquirir animais silvestres de criadores legalizados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), de conhecer a biologia e o manejo da espécie, bem como orientação e acompanhamento veterinário especializado com check-ups periódicos, reduz-se o risco de ocorrência e disseminação de doenças infectocontagiosas”, tranquiliza Hidasi.
O risco, segundo a médica-veterinária de selvagens, está nos animais silvestres oriundos de tráfico, “pois normalmente foram expostos a condições insalubres e manejo incorreto, predispondo a manifestação de doenças diversas (zoonóticas ou não)”, complementa.
Para os profissionais que atuam nos serviços veterinários essenciais que recebem, atendem, reabilitam ou mantêm animais silvestres e exóticos, sejam em centros de triagem, zoológicos, aquários e criadouros ou mantenedouros de fauna similares, a CNAS recomenda que se mantenha a vigilância em saúde dos funcionários e oriente a utilização dos EPIs por todos. “A saúde do trabalhador também é uma função da Responsabilidade Técnica”, lembra a comissão.
Já a Abravas, publicou uma nota com 23 recomendações específicas aos médicos-veterinários de animais selvagens e pets não convencionais. O documento pode ser acessado no site da associação. Confira.
A Comissão Nacional de Animais Selvagens (CNAS) tem por propósito assessorar a administração do CFMV sobre o tema, em vista da diversidade da fauna de nosso país e da necessidade de mantê-la e valorizá-la. Confira o currículo resumido dos integrantes da Comissão.
Dra. Hilari Hidasi atua como médica-veterinária do Zoológico Municipal de Guarulhos (SP), desde 2012. Preside a Abravas, é doutora em Ciência Animal, com ênfase em ornitopatologia, pela Universidade Federal de Goiás (UFG), onde também concluiu o mestrado e a graduação em Medicina Veterinária (2006). Tem também pós-graduação em Clínica Médica e Cirúrgica de Animais Selvagens, pelo Instituto Qualittas.
Dr. Ricardo Augusto Dias é médico-veterinário formado na USP e pós-graduado em Epidemiologia Experimental Aplicada às Zoonoses. Atualmente, é professor associado do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva e Saúde Animal da FMVZ-USP. É membro de comitês consultivos dos ministérios da Agricultura, Pecuária Abastecimento (Mapa) e do Meio Ambiente, além de integrar grupos de trabalho da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Trabalha com Epidemiologia, conservação da biodiversidade e zoonoses.