O repórter do Jornal do Comércio do Ceará, Eduardo Fontenele entrevista o escritor pernambucano Urariano Mota
Urarianorecentemente lançou com sucessoseu novo romance em Fortaleza
(Por Eduardo Fontenele)
Urariano Mota tem como característica física mais marcante a sua barba hirsuta e grisalha de profeta do Antigo Testamento, apesar de ateu. Ela lhe confere o aspecto de um filósofo, de um Karl Marx, ou de um escritor de séculos passados. A barba de um José de Alencar ou de um Machado de Assis. Ela dá ao escritor uma propriedade única, confere-lhe a autoridade de um sábio, e o legitima como um ser diferenciado da maioria dos meros mortais, os de barba escanhoada. Ele adquire ares de rebelde, de marginal (não no sentido pejorativo), um outsider. É a imagem clássica de um comunista, um Fidel Castro, um Che Guevara, que voltara dos mortos, renascido.
Urariano nasceu em Água Fria, bairro localizado no subúrbio do Recife, no ano de 1950,é aposentado do Banco do Brasil, formado em jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Atualmente é colunista do Portal Vermelho, do Jornal GGN e do Brasil 247. Além de ser colaborador do Diário de Pernambuco. Durante sua juventude, militou pela esquerda contra a Ditadura Militar (1964-1985). Hoje, um homem maduro, é, acima de tudo, um indivíduo marcado. Marcado pela morte de amigos, companheiros de luta. Marcado pelo luto. Por uma tristeza que nunca irá embora. A dor que nunca acaba, a dor da morte e da falta dos amigos. Transformou sua dor em tema literário. Sua luta que nunca acabará. Sua luta pela igualdade entre os indivíduos, pelo fim da segregação entre os gêneros, pela reforma da sociedade, extinção das classes sociais e pela implantação do marxismo no Brasil.
O autor permanece perplexo diante dos crimes cometidos durante o regime de exceção que ocorreu no Brasil e em outros países da América Latina, onde personagens como SoledadBarrettViedma, e Jarbas Pereira Marques encontraram seu fim de forma trágica. Os dois assassinados pela repressão, traídos pelo marido de Soledad, José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, que a entregou grávida de quatro meses do filho dele para o martírio. O Cabo Anselmo era um agente da Ditadura infiltrado na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), grupo do qual Soledad e Jarbas faziam parte. O massacre no qual os dois foram vítimas entrou para a história do Brasil como “Chacina da Chácara de São Bento”, que ocorreu no dia 8 de janeiro de 1973.
Os mártires, além dos dois citados anteriormente, se chamavam Eudaldo Gomes da Silva, Pauline Reichstul, Evaldo Luís Ferreira de Souza e José Manoel da Silva. A chacina teve participação direta do Delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DOPS, que executou os seis ditos “terroristas”, com 26 tiros, 14 apenas na cabeça.
O escritor veio a Fortaleza para lançar seu novo romance, A Mais Longa Duração da Juventude(2017), que está na segunda edição. O livro havia sido lançado no Recife e em São Paulo. A entrevista que se segue foi realizada em uma tarde de sábado, no dia 20/01/2018, durante o lançamento da obra na ACI – Associação Cearense de Imprensa.
JCCE – Por que escrever sobre a Ditadura Militar da década de 70 nos dias de hoje?
Urariano Mota –O negócio é o seguinte, Eduardo, é que a gente não escolhe os temas, os temas é que nos perseguem, entende? Não fui eu que escolhi… Eu já disse isso em outra oportunidade, eu vou escrever sobre a Ditadura. Eles nos perseguem. Porque o que você tem que escrever é sobre aquilo que te marca fundamentalmente. É impossível você ter passado pela Ditadura e não ter sido tocado por ela… Se você foi com o mínimo de consciência política, é impossível você esquecer isso. Você pode até fingir que esqueceu, mas o tema te persegue. Este tema vem me perseguindo desde o primeiro romance, Os Corações Futuristas(1997).
O segundo romance foi Soledad no Recife(2009). E depois teve O Filho Renegado de Deus(2013), onde eu falo sobre a infância de um militante de esquerda. E finalmente este, que pra mim é o meu romance mais ambicioso, mas o mais famoso ainda éSoledad no Recife.
JCCE – Por que fixar a narrativa na revolucionária e poetisa paraguaia Soledad Barrett? Qual a importância dela para a revolução?
Urariano Mota –Sim. A questão é a seguinte, Soledad não entrou por acaso, aqueles seis assassinatos que houve no Recife atingiram um amigo meu e outro que caiu na clandestinidade, daí entendi o motivo: ele havia tido contato com o Cabo Anselmo. E o Cabo Anselmo foi na casa dele, pegá-lo. Ele já tinha se mandado, entendeu? Quer dizer, eu não conheci pessoalmente Soledad. Mas eu conheci as circunstâncias que envolveram o assassinato dela e de um companheiro lá do Recife chamado Jarbas, que era um sujeito dedicado completamente à luta, ao nível da ingenuidade. Jarbas uma vez me deu uma lição de moral! (enfático)
Era uma sexta-feira de carnaval no pátio de São Pedro, e eu disse: “Era bom que houvesse cerveja pra todo mundo”. Aí ele disse: “Não. Era bom que tivesse pão. Não era cerveja, não.”
Ele era assim, entende? Quer dizer, esses são acontecimentos que marcaram profundamente a nossa geração. Quando eu lancei Soledad no Recife, eu fiquei incrível, porque aquela que havia sido tida como terrorista, estava na capa dela, a imagem dela na TV, anunciando o lançamento. Quer dizer, a busca, a procura de Soledad, eu estava procurando falar sobre um trauma de juventude, de quando eu tinha vinte de dois anos.
JCCE – O que o levou a escrever este romance?
Urariano Mota –É o seguinte, foi a morte de um militante amigo, sabe? Está aqui na dedicatória, “A Marco Albertim, in memoriam”. Era um militante comunista e jornalista, lá do Recife, que morreu faz dois anos. Cerca de dois anos. E quando eu estou lá no necrotério… Rapaz, me deu uma sensação de impotência e revolta. Eu dizia: “Isso não pode terminar assim, sabe?” A revolução não houve… ainda. Porra. E eu tenho que falar sobre isso… Como eu não sei… Mas eu vou falar sobre isso. E eu pensava que eu tinha encerrado o meu ciclo! Eu pensei que o meu ciclo havia encerrado! Mas aí eu disse: “Porra! O meu ciclo não encerrou! Está aqui e eu não sei o que vem depois disso. Eu não sei…”. Mas foi a morte dele… Marco Albertim.
JCCE – Eu ia fazer uma pergunta sobre ele, mas você já respondeu. Outra questão: fale um pouco sobre o seu processo criativo.
Urariano Mota –Ah, bom. O que chamam de processo criativo, que eu não sei bem se tenho, é o seguinte: você tem uma provocação, uma chamada, um estímulo. Essa provocação pode ser uma conversa, pode ser um trabalho… Ou seja, você é chamado… (Neste momento, a entrevista é interrompida por um interessado em adquirir o livro do autor).
Urariano retoma sua linha de raciocínio e retorna à entrevista: …Mas você não pode, seguramente, escrever somente na chamada “inspiração”. Aí você para, começa a amadurecer, e aí você começa os primeiros rascunhos. Já houve vezes em que eu comecei um livro e parei, porque quando você começa um livro, você não sabe exatamente aonde ele vai dar. Você sabe o que quer fazer e o que vai fazer, mas não sabe onde ele vai dar. Com Soledade no Recife eu tive que mudar praticamente tudo. E neste aqui eu sabia de onde eu partia, e mesmo assim eu cortei o começo anterior, entendeu? Foi isso. Vem a chamada inspiração, e a maturação da inspiração.
JCCE – Quais são suas influências literárias?
Urariano Mota –FiódorDostoiévski, LievTolstói, Máximo Gorki, Graciliano Ramos, Lima Barreto, Anton Tchekhov, Machado de Assis, o cronistaAntônio Maria, Rubem Braga, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Gabriel García Márquez, Ernest Hemingway, William Shakespeare, Franz Kafka, Joaquim Nabuco, Ivan Turguenieve, amigos de juventude, professor Arlindo Albuquerque (do colégio Professor Alberto Freyre, do Recife), Cruz e Souza, porradas, angústias e desesperos. Na ordem inversa.
Dois escritores fundamentais na minha formação literária e humana (e não separo, para mim, sempre o literário é humano). Esqueci de Johann Wolfgang von Goethe e Miguel de Cervantes. Sem Goethe e Cervantes eu seria um homem menor, encerra Urariano.
Sinopse:
O romance A Mais Longa Duração da Juventuderetrata a história de um narrador-personagem, um alter ego do próprio Urariano, que retoma suas lembranças da época da militância em plena Ditadura Militar a partir de um encontro em frente ao Cine São Luiz, em 2016, no Recife, onde um amigo, chamado Luiz do Carmo, o questiona sobre o motivo de ele ter comprado um disco da cantora de jazz americana Ella Fitzgerald sem ter uma vitrola para ouvi-lo. Como uma das Madeleines do escritor francês Marcel Proust, o encontro e o disco evocam um retorno às lembranças (às vezes dolorosas) do autor.
Trata-se do maior romance sobre a Ditadura no Brasil. O jornalista e escritor Paulo Verlaine destacou no livro: “a personagem Selene, 18 anos, é inspirada em Mirtes Semeraro de Alcântara Nogueira, estudante secundarista que, em 1968, liderou a chamada ‘Revolta das Saias’, em Fortaleza.
Trecho do livroA Mais Longa Duração da Juventude:
“A vida é o que resiste. Que contradição mais estranha, eu descubro e me digo: a vida, tão breve, é tudo que resiste. Mas que paradoxo: se ela está no tempo que se dirige para o fim, se ela é naquilo que deixará de ser, como resistirá à Irresistível? – É que existe uma resistência na duração do momento, pela intensidade, luz ou cintilação do breve. É como o brilho da estrela distante que recebemos agora, ‘agora’ ainda. Mas esse agora simultâneo não há. O que vemos já não mais existe, tamanha foi a distância que a luz percorreu no espaço até atingir a nossa percepção. Mas isso é do terreno da física, mecânico, do reino dos trezentos mil quilômetros por segundo. O que escrevo é de outra natureza.
A resistência, que é vida, se faz na brevidade pelas ações e trabalho dos que partiram e partem. Mas nós, os que ficamos, não temos a imobilidade da espera do nosso trem. Nós somos os agentes dessa duração, o trem não chegará com um aviso no alto-falante, ‘atenção, senhor passageiro, chegou a sua hora’. Até porque talvez chegue sem aviso, e não é bem o transporte conhecido. O trem é sempre de quem fica. E porque somos agentes da duração, a nossa vida é a resistência ao fugaz. Nós só vivemos enquanto resistimos. Nós alcançamos a imortalidade, isto é, o que transcende a sobrevivência ao breve, porque a imortalidade não é a permanência de matusaléns decrépitos, nós só a alcançamos pelo que foi mortal, mortal, e sempre mortal não morreu. A paixão é isto, o trompete de Louis Armstrong, a voz de Ella Fitzgerald, aquela pergunta de Luiz do Carmo em frente ao Cine São Luiz, ‘como vais escutar Ella se não tens vitrola?’. E eu apenas olhava o Capibaribe, e apertava o disco de Ella contra o peito, e me falava ‘eu a tenho perto de mim, não importa onde irei escutá-la. Ela é a minha negra de peixe-de-coco. Vai ser a senhora da noite, das horas malditas’. Aquilo que num poema Goethe gravou: ‘Deve mover-se, obrar criando / Tomar sua forma, ir-se alterando / Momento imóvel é aparência. / Na eternidade em disparada / Que tudo arruína / Que tudo arruína e leva ao nada / Somente o ser tem permanência” (Mota, 2017, p. 129-130).
O romance está à venda na Livraria Cultura, na Saraiva, na Livraria Lamarca e no site da editora LiteraRUA, por R$ 40. O livro possui 318 páginas
Excelente entrevista, o livro resgata parte da memória do nosso país em um dos momentos mais difíceis do Brasil. Mas o Jornal do Comércio poderia ter editado melhor a foto, pois a cabeça do repórter e do entrevistado estão cortadas.