Os riscos de uma política urbana sem gestão democrática
Numa lógica distinta do que vinha sendo praticado na estruturação da Política de Desenvolvimento Urbano no Brasil, desde a Constituição Federal de 1988 e do Estatuto das Cidades (Lei Federal 10.257/2001), o atual governo federal passou a promover importantes alterações em leis e programas sem que se discutisse amplamente com a sociedade, nos espaços de gestão democrática e participação popular.
Alguns exemplos foram os ajustes feitos no Programa Minha Casa Minha Vida, a criação do Cartão Reforma e a edição da MP 759/2016, que trata da regularização fundiária urbana. Esse último caso alterando diversas leis construídas com a participação da sociedade. Além das medidas já citadas, o Conselho das Cidades passou a ser boicotado e está sem mandato desde outubro. Juntamente com a não convocação de suas reuniões num período fundamental para dar continuidade ao 6º ciclo de Conferências das Cidades, o governo federal editou o decreto 9.076/2017, que interrompe o ciclo de conferências, ao adiar a Conferência Nacional para 2019 e transferindo poderes do Conselho e da Conferência para o próprio governo.
Isso, somado a outras medidas do governo Temer, escancara a necessidade de controle e a dificuldade de dialogar que há por parte do mesmo. Essa forma de gestão nada democrática da política urbana brasileira e seus desdobramentos têm mobilizado a atenção e o apoio de diversas organizações e redes dentro e fora do Brasil. Especialmente nesse momento em que compromissos com a nova agenda urbana, instituída durante a III conferência da ONU-Habitat, foram assumidos pelos próximos 20 anos, o País parece dar grandes passos para trás.
Como justificativa à sua ação, o governo publicou a portaria 495/2017, convocando uma consulta pública sobre os aperfeiçoamentos no Conselho. A contar pela sua atitude até o momento, o que em tese parece algo democrático provavelmente será utilizado para legitimar suas intenções e neutralizar a gestão democrática.
Consultas são instrumentos de fortalecimento da democracia e para esse fim devem ser usadas. Sendo assim, o governo deveria submeter o resultado da consulta pública ao Conselho e à Conferência Nacional das Cidades, afinal é nesses espaços que estão a pluralidade e a legitimidade necessárias para mudar as regras para o próximo ciclo de conferências.
Em uma recente decisão, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) recomendou ao Ministério das Cidades, a prorrogação imediata de mandatos do Conselho Nacional das Cidades. No documento encaminhado ao ministro Bruno Araújo, com cópia para a Presidência da República, a PFDC também solicita que seja convocada reunião colegiada do ConCidades, de modo que o órgão possa legitimamente deliberar acerca da data de realização da Conferência Nacional das Cidades. Porém, o Ministério das Cidades se negou a acatar a recomendação feita pela PFDC, alegando limitação normativa e efetivamente ignorando o diálogo com os conselheiros em mandato e a importância da existência dos espaços de gestão democrática para o desenvolvimento do país.
A existência do Conselho Nacional das Cidades garante a representação dos interesses da população e a diversidade de quem está nas cidades, especialmente os mais vulneráveis. Uma vez que não existe Conselho, o governo decide apenas sob a influência dos que têm mais poder econômico. A gestão democrática das cidades envolve um processo de organização e engajamento da população para participação nas decisões sobre como melhorar as condições de vida das pessoas. Portanto, reconhecer as diversas formas de organização e a evolução histórica na forma de se organizar essa contribuição é algo fundamental. Ao desrespeitar o Conselho Nacional das Cidades o governo ignora um caminho que vinha se consolidando e dá um péssimo exemplo para estados e municípios, que podem passar a ignorar as diversas formas de contribuição da população organizada.
É fato que dividir o poder de decidir e enfrentar divergências e conflitos não é algo fácil de digerir pelos governos, especialmente numa área onde os interesses privados tem uma grande influência sobre a agenda pública. Nenhum governo assumiu a criação de um Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano, que vincularia investimentos nessa área ao processo de gestão democrática. Se por um lado a política urbana vinha experimentando a participação popular de uma forma ainda tímida e frágil, por outro é inegável a contribuição dos conselhos e Conferências das Cidades na consolidação de uma cultura de participação na proposição e monitoramento das políticas urbanas nos três níveis.
Nos últimos anos, impulsionados pelo processo de redemocratização brasileira e pela própria constituição, setores da sociedade civil contribuíram com diversos avanços, tendo inclusive formulado projetos de lei de iniciativa popular que depois foram aprovados. Talvez de forma tardia, se comparada a outras políticas como saúde e assistência social, a gestão democrática das cidades foi reconhecida como diretriz da política urbana e passou a se utilizar dos diversos instrumentos para promoção da participação popular na proposição e acompanhamento dessa política em âmbito nacional, estadual e municipal.
Certamente tal estruturação encontrou campo mais fértil em alguns momentos, e menos fértil em outros, para avançar ao longo dessa curta história. De todo modo, os marcos legais e institucionais nacionais foram fundamentais para que avanços fossem concretizados, tais como os programas nacionais de habitação, a política de mobilidade urbana e o plano nacional de saneamento, o que obviamente não ocorreu de maneira uniforme, considerando as diferentes e desiguais realidades locais.
Obviamente que nem tudo são flores e que existem críticas no âmbito da própria sociedade civil organizada em relação à efetividade dos conselhos e a outros limites impostos pela institucionalidade. Tais espaços careceriam de mais poder para contribuírem de fato com a gestão democrática das cidades, pois muitos dos conselhos não foram instituídos por lei, nem são deliberativos. Mas, acabar com este espaço democrático é, sem dúvida, um retrocesso para um País que vem se comprometendo com diversos acordos internacionais, visando a melhoria da qualidade de vida de sua população.
Socorro Leite é diretora executiva da Habitat para a Humanidade Brasil