Genômica mostra influência do sexo dos reprodutores na maciez da carne bovina

Estudo desenvolvido na Embrapa Pecuária Sudeste (SP) comprovou que a maciez da carne bovina está diretamente relacionada ao sexo dos reprodutores. Assim como os humanos, os bovinos também apresentam duas cópias de cada um dos seus genitores: do pai e da mãe. Em alguns casos, porém, há maior expressão de genes paternos ou maternos.

A pesquisa identificou que variações no DNA dos progenitores afetam a expressão de cópias de um mesmo gene nos bezerros. Os resultados são relevantes para o melhoramento genético de raças, pois não adianta selecionar um reprodutor se os seus descendentes não herdarem as suas características de interesse, como a maciez da carne, por exemplo, ou, na linguagem técnica: se os seus alelos (formas alternativas de um determinado gene) não se manifestarem na progênie (prole).

“Foram estudadas as variações do DNA que apresentam essa diferença. A partir daí, é possível prever se determinadas características se expressarão mais ou menos no animal,” conta a pesquisadora da Embrapa Luciana Regitano. “A pesquisa nos ajuda a entender por que algumas características ‘saltam gerações’, ou seja, passam de avós para netos, mas não se manifestam nos filhos”, esclarece. Esse trabalho foi apresentado no Congresso da Sociedade Internacional para Genômica Funcional dos Animais (ISAFG), na Austrália.

Esse conhecimento permite aos cientistas definir se a seleção de um determinado gene deve ser feita pela via paterna ou materna. Contribui também para mapear as mutações regulatórias, pois sempre que existe essa diferença de expressão entre os dois alelos, espera-se encontrar na vizinhança uma mutação que afete a regulação daquele gene.

Carne mais macia depende do touro ou da vaca?

A pesquisa é interessante para as áreas de reprodução e melhoramento. Mesmo tendo uma cópia do gene da mãe e outra do pai, ocorre um fenômeno observado na última década em que somente a cópia herdada do pai (ou da mãe) vai se manifestar. Esse problema foi chamado de “imprinting” e a sua origem ainda é pouco conhecida dos cientistas.

Os estudos sobre “imprinting” geralmente se voltavam às doenças. Uma das hipóteses é que com a evolução, os organismos não conseguiram se adaptar à condição diploide (duas cópias do genoma) e, das duas cópias, uma acaba se desligando (apenas uma se manifesta).

Como exemplo, Regitano cita um gene que melhora a maciez da carne. “O processo de melhoramento seleciona o animal que produz carne mais macia. Se a expressão do gene desse animal só se dá a partir da cópia da mãe, não adianta usar um touro melhorado e esperar que seus filhos produzam esse tipo de carne. Essa característica só poderá se manifestar nos netos dele que forem filhos de suas filhas, pois terão herdado a cópia do gene de suas mães”, explica a pesquisadora.

Segundo ela, é preciso repensar a forma como se vai “levar” esse gene para as gerações futuras ou considerar isso na hora de fazer a modelagem matemática do que se espera da seleção. “É necessário valorizar o ganho na progênie”, afirma a cientista.

Equipes e premiação

A pesquisa que descreveu o desbalanço na expressão dos alelos no músculo foi desenvolvida durante o doutorado da bióloga Marcela Maria de Souza, que foi orientada por Regitano, em parceria com Simone Niciura, pesquisadora da mesma Unidade da Embrapa. Já a doutoranda Marina Ibeli realizou a descrição do desbalanço no fígado, sob a orientação de Niciura, e recebeu uma premiação (veja quadro abaixo).

Chips de DNA relacionam o sexo dos reprodutores à qualidade de carne do rebanho

A pesquisa utilizou um chip de SNPs (fala-se snips – variação de um nucleotídeo, que é a base do DNA) que contém mais de 700 mil marcadores do tipo snip para o genoma do boi. Esse chip é usado para a seleção genômica. “Marcela comparou as informações do chip com as da região expressa do genoma que produz o RNA mensageiro, primeiro passo para a expressão de um gene”, detalha Regitano.

De acordo com a pesquisadora, o estudo verificou quantas cópias de RNA de cada SNP eram correspondentes ao alelo herdado da mãe e quantas correspondiam ao alelo herdado do pai nessa etapa, sem se preocupar com as características de produção. “Desse conjunto de snips, foram descobertos aproximadamente 430 com diferenças de expressão entre os dois alelos”, relembra.

“Nosso objetivo agora é entender a causa dessas diferenças de expressão. Para isso, estamos investindo em testes capazes de identificar as mutações regulatórias que explicam o comportamento dos alelos”, complementa.

Dados genéticos de bovinos inéditos no mundo

A pesquisa desenvolvida por Marcela Souza durante seu doutorado na Alemanha resultou na elaboração de um compêndio de fatores de transcrição bovinos inédito no mundo.

Ao começar a estudar a expressão alélica de genes importantes para a maciez da carne em bovinos, ela percebeu que não havia na literatura um banco de dados curado manualmente para esse fim, a exemplo dos que existem para camundongos e humanos.

O compêndio foi construído com base no banco de humanos mais utilizado na literatura. “Entrei em contato com o autor desse banco, Juan Vaquerizas, pesquisador principal do Instituto Max Planck de Biomedicina Molecular em Münster, na Alemanha, que me recebeu por quatro meses”, explica a estudante.

“O período na Alemanha não foi suficiente para analisar, um por um, os cerca de 1.600 genes, conferindo funções evidenciadas na literatura e domínios presentes nas sequências dos genes. Foi um longo processo até conseguir terminar e publicar”, assinala.

O documento traz ainda um banco de cofatores de transcrição, proteínas que interagem com os fatores auxiliando em sua função de controle sobre a expressão dos genes.

Ainda não se conhece funcionalmente 100% do genoma bovino e esse trabalho é um ganho para o campo de estudo da genética desses animais. Além do conhecimento de base acrescentado, os pesquisadores poderão usar o compêndio em vez dos bancos de dados humanos ou de camundongos.

“Mas esse é só o começo, ainda temos muitos desafios à frente. Um deles é a atualização do banco, que foi construído com base nos dados disponíveis na literatura naquele momento. Com o passar dos anos, mais proteínas terão suas funções conhecidas e o documento precisará ser retificado”, pondera.

Eficiência alimentar também é herança

A partir de dados do fígado de animais da raça Nelore, a bióloga Marina Ibelli Pereira Rocha (foto) está buscando descobrir como a característica de eficiência alimentar é transmitida do pai, ou da mãe, para o filho. Eficiência alimentar é a capacidade de o bovino alcançar o peso ideal (e produzir mais) consumindo menos alimentos.

Para sua pesquisa, ela está avaliando os extremos em eficiência alimentar – 15 animais mais eficientes (que alcançam o mesmo peso comendo menos) e 15 menos eficientes (comem mais para chegar ao mesmo peso). “Temos dados de sequenciamento de RNA, ou seja, expressão dos genes dos dois grupos, e estamos avaliando as diferenças de expressão de cada um deles”, afirmou.

No caso, Rocha estuda um tipo de expressão dos genes chamado alelo-específica. Cada animal possui duas cópias de cada gene – uma oriunda do pai e outra da mãe. “Supostamente, eles vão se expressar igualmente, porém, em determinados casos um se expressa mais que o outro. Ainda há muito a estudar sobre a expressão diferencial desses alelos, se vêm do pai ou da mãe. É o que chamamos de imprinting”, conta. Uma descoberta a cientista já fez: a vaca é tão importante para determinar as características do filhote quanto o touro.

Nos estudos sobre a expressão alelo-específica e a diferença entre as cópias, a pesquisa levantou alguns genes que fazem sentido para explicar essa “transmissão de dados”, que a genômica chama de transcrição. Para descobrir o fenótipo (característica “visível”) de, por exemplo, depósito de menos gordura, que geralmente indica um animal mais eficiente, a cientista procurou as vias metabólicas nas quais os genes que tentam explicar essa característica atuam. Nesse caso, a atuação dos genes em vias de ácidos graxos ou na ocorrência de estresse oxidativo dentro da célula poderia ajudar a entender.

Na literatura há vias que explicam as modificações fenotípicas. Encontrar essas vias seria como localizar a página de um livro, mas ainda é preciso descobrir se as letras que estão ali fazem sentido.

Trabalho que avalia efeitos da metilação no fígado de bovinos é premiado

Em abril de 2019, um trabalho de Marina sobre metilação gênica foi premiado em um workshop realizado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Trata-se de uma modificação química do nucleotídeo, que é a base nitrogenada da estrutura que compõe o DNA. Em sistemas biológicos, a metilação está normalmente associada à regulação de expressão gênica e de funções de proteínas e metabolismo.

Para sua pesquisa, a bióloga extraiu o tecido do fígado do Nelore, macerou as amostras, quebrando as células e deixando apenas o DNA. O grupamento metil pode ou não fazer parte do DNA e a bióloga usou uma técnica que modifica quimicamente o DNA de forma a separar e quantificar as bases que contêm metil das que não têm. Os genes portadores dessa alteração química são geralmente inativos. “Conseguimos identificar as regiões do genoma nas quais a modificação química ocorreu e que provavelmente estão desativados”, conta.

A partir daí, foi feita a comparação dos animais mais eficientes com os menos produtivos para descobrir quais tinham metil e em quais genes. “Assim podemos saber que genes estudar para compreender melhor as características produtivas”, finaliza.

Foto: Ana Maio

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