O homem que disse não ao AI-5
Daniel Medeiros*
“Acrescento, senhor presidente, que da leitura que fiz do Ato Institucional, cheguei à sincera conclusão de que o que menos se faz nele é resguardar a Constituição, que no seu artigo 1º declara-me preservada. Eu estaria faltando um dever para comigo mesmo se não emitisse, com sinceridade, esta opinião. Porque, da Constituição – que, antes de tudo, é um instrumento de garantia de direitos da pessoa humana, de garantia de direitos políticos – não sobra, nos artigos posteriores, absolutamente nada que possa ser realmente apreciável como sendo uma caracterização do regime democrático. (…) Pelo Ato Institucional, o que me parece, adotado esse caminho, o que nós estamos é (…) instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura.”
Era o dia 13 de dezembro de 1968, e na sala, além do presidente Costa e Silva, estavam todos os ministros e Pedro Aleixo, o vice-presidente, autor dessas palavras. Ele foi o primeiro a falar e o único a discordar e a lembrar que o que estava acontecendo era o país estava se tornando, de fato, uma ditadura.
Mineiro, Aleixo apoiou o golpe de 1964 e depois se opôs à transformação do golpe em ditadura. Antes, o mesmo ocorrera com a sua relação com Getúlio Vargas. Aleixo foi o primeiro a lançar a candidatura de Vargas para presidente e depois apoiou a revolução, que depôs o governo Washington Luís e colocou Vargas no poder. Defendeu e participou da constituinte de 1934 e em 1937 tornou-se presidente da Câmara. Apoiou a repressão aos comunistas que tinham se sublevado, mas se afastou do caudilho gaúcho quando ele virou ditador. Em 1943 assinou o Manifesto dos Mineiros, exigindo a volta da democracia.
Pedro Aleixo viveu dois prólogos de ditaduras acreditando firmemente que elas não ocorreriam. Apoiou Vargas e os militares na esperança de que as intervenções que considerava revolucionárias preservariam a ideia da Lei e se pautariam nela, afastados os perigos autoritários. Mas não imaginou que, ao contrário, essas iniciativas fossem justamente a semente de longos períodos de autoritarismo.
No primeiro caso, Aleixo afastou-se de Vargas e da vida política voluntariamente até o fim do Estado Novo, quando ajudou a fundar a UDN. E então, mais uma vez, apoiou uma solução de força contra um governo eleito, acreditando que seria um mal menor diante de uma ameaça maior, o comunismo. Enganou-se mais uma vez. Quando Costa e Silva ficou doente, em agosto de 1969, os ministros militares impediram a posse do vice presidente Pedro Aleixo e estabeleceram uma Junta Militar. Aleixo era “democrático” demais para o momento. Acreditava na Constituição e defendia eleições diretas e o voto para os analfabetos. Inaceitável para os militares da linha dura. E então eles deram um golpe dentro do golpe do golpe. O avesso do avesso do avesso.
O país é jogado nas trevas. A resistência apelando para o silêncio amargurado ou a violência inútil. Pedro Aleixo retirou-se mais uma vez de cena. Em 1970 tentou fundar um novo partido, chamado Partido Democrático Republicano. Porque acreditava nessas duas palavras, embora tenha sido personagem destacado de suas duas maiores interrupções. O momento mais amargo foi ter tido um irmão, Alberto, morto em virtude de torturas praticadas nos porões da ditadura que Pedro imaginou poder domar com a força das palavras. Resguardar a Constituição era para ele o marco civilizatório fundamental para impedir violências como a que atingiu seu irmão. Sem isso, só a barbárie.
Constituinte de 1934, viu Vargas jogar a Constituição no lixo. Defensor da Constituição de 1967, viu os militares repetirem o gesto. Restou então a última mensagem, na coragem de ser a única autoridade do governo Costa e Silva a se opor ao famigerado AI-5, chamando-o por seu verdadeiro nome: ditadura.
Pedro Aleixo morreu em março de 1975, sem testemunhar o assassinato covarde de Vladimir Herzog, de Manuel Fiel Filho, do massacre da Lapa, do atentado do Rio Centro, entre outras violações que marcaram os estertores do regime militar. Mas deixou o exemplo de não ter se curvado a isso. Hoje, quase não é lembrado. Fica a lembrança de seus erros, de seu ato e de sua esperança na República e na Democracia.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica pela UFPR e professor de História no Curso Positivo.